terça-feira, 25 de dezembro de 2007

A atualidade do velho diálogo machadiano: o vazio-pleno da linguagem

Maria Heloísa Martins Dias
Unesp/Ibilce - São José do Rio Preto


Imagino um leitor de fins do século XIX diante de um "texto" como este:

O velho diálogo de Adão e Eva1
Brás Cubas

. . . ?
Virgília
. . . . .
Brás Cubas
. . . . . . . . . . . . .
. . . . . .
Virgília
. . . . . !
Brás Cubas
. . . . . .
Virgília
. . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . ! . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . .
Brás Cubas
. . . . . . . . .
Virgília
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Brás Cubas
. . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . ! . .
. . ! . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . !
Virgília
. . . . . . . . . . . . . ?
Brás Cubas
. . . . . !
Virgília
. . . . . !

Trata-se do capítulo LV do romance Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, como muitos já conhecem e vêm lendo, com o mesmo espanto, talvez, de quem o leu há mais de cem anos. Interessante seria traçar as diferentes formas de recepção do texto e reação dos leitores, ao longo do tempo, diante do texto machadiano, mas esse trabalho foge aos nossos objetivos. Não é muito difícil imaginar essas reações, no entanto, se analisarmos essa curiosa "narrativa" que o autor do Realismo brasileiro oferece para deleite e alimento "ao verme" que roerá "as frias carnes" de seu texto. Pelo menos é esta a dedicatória que Machado nos deixa.

Embora em muitas passagens de seus romances Machado drible o interesse do leitor, despistando-o ou desencorajando-o de se fixar em seu relato, com afirmações do tipo "pule o próximo capítulo", "decida o leitor se quer continuar", "este livro é enfadonho e cheira a sepulcro", "o maior defeito deste livro és tu, leitor", apesar desses aconselhamentos, é impossível passar por cima desse insólito capítulo. Nosso desejo de corroer a obra, não escatologicamente como propõe seu autor, é mais forte do que o abandono, e acaba revelando uma vida que pulsa e irradia sentidos, ao contrário do sepulcro e do tédio anunciados.

A tentação de considerarmos esse capítulo em sua autonomia não deve ser maior que a necessidade de contextualizá-lo, já que sua relação com o conjunto da obra ajuda a iluminar melhor a função e o significado desse momento específico. Ainda mais no caso de Memórias póstumas..., em que os capítulos são "puxados" por um fio de contigüidade montado estrategicamente pelo Autor - processo que, em si mesmo, já mereceria uma bela análise.

Se voltarmos ao capítulo imediatamente anterior ("A Pêndula"), veremos que ele finaliza com a observação do narrador de que seu pensamento, "ardiloso e traquinas" (p.70), voara em direção à casa de Virgília, em cujo peitoril da janela encontrou-se com o pensamento dela com quem ficou a conversar, ambos "a repetirem o velho diálogo de Adão e Eva". Se o leitor espera encontrar a seguir esse diálogo, o que passa a ler é um não-diálogo ou um diálogo que chama a atenção pela singularidade de sua construção. Além do desarme de uma expectativa criada anteriormente no leitor, o capítulo se oferece como excelente exemplo do processo de desautomatização, inerente ao fato artístico, tal como sugeriu Chklóvski em seu famoso ensaio2.

Desautomatizar significa desacomodar os hábitos de condicionamento do sujeito e de percepção do objeto, instaurando novos arranjos e soluções construtivas que perturbem, estranhem ou desfamiliarizem o instituído, o conhecido. Ora, se o ato de leitura se caracteriza por promover o encontro entre paradigmas herdados, assegurados pela tradição e por referências culturais, e novos paradigmas que a obra oferece com sua realização específica, então o "texto" machadiano intensifica o próprio ato de leitura, na medida em que nos estimula a enfrentar esse novo paradigma posto em jogo por sua linguagem. Mas trata-se de um texto não-familiar, portanto, que se desvia dos padrões convencionais ou previsíveis presentes no ato discursivo enquanto tal, para assumir outra forma de atualização. Que forma é essa e como se realiza, provocando efeitos desautomatizadores, é o que veremos agora.

A alusão às figuras bíblicas - Adão e Eva - corresponde à técnica intertextual de Machado, em trazer para seu universo ficcional inúmeras referências culturais (pensadores, filósofos, personagens literárias, escritores etc) que, em Memórias póstumas, mais que nos outros romances talvez, intensifica-se como processo. Mas tal intersecção de fontes diversas não significa erudição ou a confirmação de um saber que se sacraliza, e sim um jogo lúcido com a alteridade, de modo que a presença desses outros incorporados em seu discurso ajuda a construir uma dimensão própria dos sentidos que a obra vai gerando com sua visão múltipla. É a partir daí que Adão e Eva devem ser lidos, como signos colocados dentro de uma nova moldura, na qual a afirmação da fonte se tranforma em negação ou esvaziamento. Se há algo comum entre o par bíblico e as duas personagens machadianas ( a tentação de um amor que se alimenta da interdição, a aproximação feita de distância, culpas e pecados), o próprio vazio da página em que figuram acaba por desfazer.

A colocação dos nomes Brás Cubas e Virgília, intercalados pelos pontos, interrogações e exclamações, sem nenhum suporte discursivo para consubstanciar o diálogo entre eles, enfim, a estranha configuração do texto, é uma falta que se ergue como recusa do instituído. É preciso, portanto, que o leitor saiba redimensionar esse vazio, saiba ler novos sentidos gerados a partir da ausência. Se os interlocutores aparecem destituídos de falas, esse não-dizer iconiza ou constrói a imagem mesma da impossibilidade de entendimento, e o vazio significa a rejeição de dizeres previsíveis e desgastados, que nada acrescentariam à real situação vivida pelas personagens.

Entre Brás Cubas e Virgília o que existe são movimentos constantes de (des)encontros, hesitações, sentimentos contraditórios, entrega e recusa. Digamos que entre eles se constrói um caminho da diferença, que o próprio narrador reconhece, no capítulo LVI, que vem imediatamente após o desse "velho diálogo" que não se realiza. A história entre Brás Cubas e Virgília se resume a encontros, tratos, rompimento de tratos, novos encontros, enfim, oportunidade e acaso testando a maturidade (ou imaturidade?) de ambos: "se nenhum de nós estava verde para o amor, ambos o estávamos para o nosso amor" (p.71). Eis aí a diferença, que não só as frases assinalam (e explicitam mais adiante) como também aquele diálogo inexistente concretiza, de maneira exemplar, por meio de seus vazios. O momento oportuno para ambos, em que se conjugassem desejo e consumação, projeto e realização, emocionalidade e pragmatismo, enfim, esse momento não existe, ou melhor, não pode existir. E essa não-existência concretiza-se, figurativamente, no diálogo construído de maneira tão criativa por Machado.

Brás Cubas e Virgília estão separados por esse espaço que desnarrativiza sua história (pois o discurso é desconstruído), como se impedindo que uma história comum se construa entre eles. Tal procedimento estético, de natureza estrutural, existe em homologia com a situação de ilegalidade que os envolve; é só lembrarmos que Virgília se casara com Lobo Neves, destino que intensifica o amor proibido ("Agora, que todas as leis sociais no-lo impediam, agora é que nos amávamos deveras." - p.72). Portanto, esse impedimento tramado pela história, no plano do enunciado, recebe uma configuração pela trama artística da enunciação proposta com o diálogo interdito.

Mas a alusão à esfera bíblica também é motivada por outos aspectos, internos e externos ao romance machadiano. Sabemos o quanto, para o autor brasileiro, atitudes como desestabilizar valores codificados, relativizar posições absolutas, burlar o sagrado, enfim, tratar ironicamente as convenções, são fundamentais para seu projeto artístico. Desse modo, se Machado desmistifica a própria fonte de que se apropria, ao esvaziá-la de suporte e conteúdo, que são substituídos por uma pontuação intrigante (e vacilante), essa atitude parece vir ao encontro da posição dúbia e rebelde da própria personagem Virgília em relação à religião. Religiosa, mas sem muita convicção, entregue a comportamentos contraditórios que afirmam e negam sua crença, ela parece demonstrar "certo vexame de crer", segundo o narrador Brás Cubas. O fetichismo inconfesso de Virgília (mantinha em sua alcova um oratoriozinho com imagens que jamais comentara com as amigas) e sua crítica às beatas a quem tachava de religiosas, são sinais de uma relação ambígua com a tradição, na qual se confundem autenticidade e fingimento, apego e desapego. Não estará o pseudo diálogo de Adão e Eva, construído por Machado, reproduzindo essa tensão entre falsidade e verdade, crença e descrença, traços do jogo amoroso entre as duas personagens? O não-diálogo funciona como simulacro desse espaço suspenso onde reina a (des)crença.

Por outro lado, se Machado manipula assim lúcida e ludicamente a tradição, resgatando e ao mesmo tempo apagando a fonte de que se serve, como entender o adjetivo "velho" que figura no título do capítulo? Ao se referir ao "velho diálogo de Adão e Eva", Machado parece criar no leitor a expectativa de encontrar um "texto" ou história já conhecida, familiar, isto é, aquela já escrita pelas sagradas escrituras, conseqüentemente, portadora de valores e significados convencionalizados. Mas é aí que o horizonte de expectativa se desfaz, justamente para emancipar3 o leitor ou liberá-lo de sua habitual postura em relação ao objeto apresentado. O "velho" é uma pista falsa, que só existe como ponto de partida para um percurso que será marcado pelo seu contrário, por um percurso que só se justifica na medida em que invalida o conhecido para que ele ressurja reconstruído por uma nova focalização. A nova construção que Machado lhe confere "provoca" o leitor exatamente por se oferecer, não como um acréscimo ou preenchimento de algo, mas como um vácuo, como um não-sentido, como uma perda, um espaço vazio para os sentidos serem colocados, enfim, como uma margem a ser preenchida. Se quisermos aproveitar as colocações de Roland Barthes, poderemos dizer que se trata de uma "margem subversiva" que acentua o "prazer" do texto, já que este atua como um "fading que se apodera do sujeito no imo da fruição."4 É essa falta que estimula a leitura e, no caso do texto em questão, graficamente criada e solicitando um suplemento que possa dar conta das possibilidades não reveladas ou desconstruídas. E se quiséssemos ir mais adiante nesse nosso percurso crítico de leitura, não seria forçado desembocarmos em outro conceito visível nessa estratégia de construção encenada por Machado. Trata-se da desconstrução. Sem entrarmos nas complicadas (e por vezes infrutíferas) discussões acerca dessa noção pós-moderna defendida por Jacques Derrida, podemos apenas recolher traços que nos interessam para a análise, mesmo porque é sempre arriscado aproximar objetos tão distintos como a obra machadiana e a teoria derridaneana.

Na verdade, Machado apaga os sentidos por essa espécie de descarte do verbal e é isso que chama a atenção do leitor, pelo menos daquele leitor atento, para quem uma obra significa em todos os seus movimentos e processos de feitura, ou seja, o leitor que não tem pressa em ir adiante só para ver o que acontece com a história, mas ao contrário, pára e demora-se em observar o que não acontece ou o que se mostra vazio.

Se olharmos assim para o capítulo LV de Memórias póstumas, veremos que o estranhamento de sua construção, ou melhor, de sua desconstrução, é revelador, afinal, de uma concepção de obra de que talvez nem mesmo Machado de Assis tenha se dado conta. Parece que essa encenação com as margens, então libertas de conteúdos pré-fixados, quer mostrar uma obra que não se faz como reflexo do mundo ou resposta a ele, mas como uma pergunta sempre formulada, como inquietações que não se preenchem plena ou imediatamente. O "diálogo" já não é apenas entre Adão e Eva ou Brás Cubas e Virgília, mas também entre autor e obra, e mais ainda, texto e leitor. Um diálogo que não se cumpre nos moldes ideais (nem tradicionais) porque a consciência crítica, numa lucidez permanentemente zombeteira e desconfiada, não se conforma com o dado ou já visto. Mais do que respostas ou soluções, há um percurso de busca que se satisfaz com a distância e a ausência, não para desistir dos resultados, mas para inscrevê-los num devir que os transforma constantemente.

Notas

1. Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas, São Paulo, Ática, 1981, 8ª ed, p. 71

2. "A arte como procedimento", Teoria da literatura: formalistas russos, Porto Alegre, Globo, 1973, pp. 39-56.

3. Refiro-me às noções propostas por Hans Robert Jauss, em seus estudos centrados na estética da recepção.

4. O prazer do texto, São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 13.


Fonte: http://www.geocities.com/ail_br/aatualidadedovelhodialogomachadiano.htm

Acessado em 25 de dezembro de 2007

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Frases Machadianas - Memórias Póstumas de Brás Cubas

-Suporta-se com paciência a cólica do próximo.

-Matamos o tempo; o tempo nos enterra.

-Um cocheiro filósofo costumava dizer que o gosto da carruagem seria diminuto, se todos andassem de carruagem.

-Crê em ti; mas nem sempre duvides dos outros.

-Não se compreende que um botocudo fure o beiço para enfeitá-lo com um pedaço de pau. Esta reflexão é de um joalheiro.

-Não te irrites se te pagarem mal um benefício: antes cair das nuvens, que de um terceiro andar.

Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas
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Frases e livros disponíveis do escritor Machado de Assis
Acesse:
http://www.fuvest.br/default.asp
http://pulgaria.blogspot.com/2007/11/leituras-machadianas.html
http://pulgaria.blogspot.com/

sábado, 22 de dezembro de 2007

A arte da digressão

Por Braulio Tavares
jornal da Paraíba

Uma das críticas mais injustas que se pode fazer a um romance é censurar ao autor o uso de digressões. Uma digressão é um afastamento do assunto principal para contar uma história secundária, refletir sobre algum aspecto da vida ou do mundo, ou explicar algum detalhe acessório da narrativa enquanto a história principal fica esperando.


Como tudo o mais na esfera da arte, tem gente que gosta e gente que não gosta. Eu sou dos que gostam, e vou explicar por quê.Primeiro, uma pequena digressão. Quando eu tinha dezesseis anos, vi dois caras conversando sobre um curso de Leitura Dinâmica anunciado no jornal.

Um deles perguntou qual era a vantagem de ler cinco ou dez vezes mais depressa (era o que o curso prometia). O outro retrucou: “Quando você está lendo um livro, qual é a coisa que você mais quer saber?” O outro embatucou. Eu, que escutava ali por perto, também. O primeiro respondeu: “Ora, você quer saber o fim, quer saber como o livro acaba. E com a Leitura Dinâmica o livro acaba mais depressa”.

A digressão desagrada esse pessoal: os que querem que o livro acabe depressa. Esse tipo de leitor (a que eu chamo, quando estou de mau humor, “leitor americanizado”) tem uma visão utilitária da leitura, e quer maximizar a eficiência do ato leitoral. Quer ler cada vez mais depressa, consumindo cada vez mais palavras por minuto. E exige do autor que não fique enrolando, vá direto ao ponto, conte a história em linha reta, como uma seta em vôo instantâneo rumo à palavra “Fim”.Cada um lê do jeito que lhe apraz, e não sou eu quem irá ensinar aos outros como viver. Mas os leitores como eu não querem que o livro acabe logo, não querem saber já como é o fim, a não ser quando a leitura é feita por obrigação profissional, para publicar uma resenha na semana que vem.

Quando lemos por interesse próprio ou por prazer, não estamos disputando uma corrida de cem metros rasos. Avançamos no interior do livro como alguém que passeia numa cidade onde deverá passar os próximos dias: sabendo que não vai dar para ver tudo, sem pressa de conhecer todos os detalhes, caminhando meio ao acaso, sem lugar específico para ir e sem hora para lá chegar.

As digressões são como mudanças de rumo provocadas pelo impulso súbito de pegar um ônibus que parou ao nosso lado, ou de entrar por uma galeria de lojas que surgiu à nossa direita, ou de saltar do metrô numa estação desconhecida para saber o que existe ali em volta.

Não há necessidade de caminhar em linha reta, rumo a um objetivo, porque tudo ali nos interessa igualmente. A digressão serve para abrir janelas, links de hipertexto, notas de pé de página. Traz temperos e sabores diferentes ao prato principal.

O rei da digressão, Laurence Sterne, dizia que as digressões são “a luz do sol”. Elas não são a história que estamos lendo, não são a paisagem onde viajamos, são a luz que ilumina tudo aquilo e os torna reais aos nossos olhos.

A palavra vadia

Por Airton Monte
jornal O Povo

Não importa o que você pensa, diga ou faça, a vida continua a rodar em cima de trilhos incertos, seguindo rotas inesperadas. Sim, claro que você tem todo o sagrado direito de espernear, esbravejar, rebelar-se contra as armadilhas que o destino lhe prepara, emboscado nas esquinas do tempo e você está mais do que cansado de saber que o tempo sempre urge e regorgita seus entulhos. Bem que o poeta Homero acreditava piamente no que dizia quando dizia: "que é somente em mim que ocorre o bem e o mal".

Por vezes, penso que nada do que escrevo carece de alguma importância e que nem literatura verdadeiramente é. Meus romances, minhas novelas, meus contos, meus poemas, minhas crônicas me parecem de uma banalidade, de uma vulgaridade ímpares e que, para ser mais realista, eu bem que os poderia ter escrito em rolos de papel higiênico. Pelo menos, isso lhes daria a perfeita dimensão de que são dotados e o real porte de meu talento como escritor. Sim, eu devo, por uma questão de honestidade, ser realista, pragmático ao menos uma vez na vida.

De nada vai me adiantar por panos mornos nessa questão literária, posto que literatura trata-se de uma coisa muito séria, não é negócio para amadores. Literatura é destinada somente aos grandes gênios incompreendidos feito o Carlos Emílio Correia Lima e o Gilmar de Carvalho. Eu devo, acima de tudo, inclusive do bem e do mal e da minha vaidade pessoal, recolher-me a minha atroz insignificância.

E afinal, para que mentir a esta altura de meu existir, quando estou prestes a dobrar o cabo da boa esperança? Não passo de um mero, de um reles escrevinhador de croniquetas comezinhas, despidas do mais remoto brilho ou fulgor de inteligência. Escrever é coisa muito séria e amadores devem, para o seu próprio bem, passar ao largo desse terrível ofício.

Comungo com a poeta Olga Orozco quando ela fala pela boca de um anjo: "ser poeta é sentir-se incompleto, limitado e prisioneiro neste eu e nesta realidade tangível, frente a um universo desconhecido que nos excede". E eu nunca me senti assim.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

LEITURA: só quinze minutos

Por Luiz Carlos Prates

Por que, Senhor, por que fico tão irritado com bobagens? Bobagens, sim. Não há dúvida de que o mundo está sendo regido pela moeda falsa da frivolidade. Difícil é achar alguém falando sério, dizendo alguma coisa que valha a pena.

Até já me disseram que se alguém vier com uma proposta dessa qualidade ficará falando sozinho, ninguém lhe vai emprestar os ouvidos. Será? Olhe, leitora, não agüento mais ouvir gente conversando, entrevistando ou sendo entrevistada na televisão sobre "entrar em forma" para o Verão. Néscios dos dois sexos, mais elas que eles, falando em entrar em forma e querendo com isso dizer perder peso, ficar "elegante", poder entrar num bom biquíni, exibir-se como um bicho de exposição nas passarelas de areia suja.

E são sujas todas as areias das nossas praias. Entrar em forma no corpo físico virou loucura coletiva, mas ninguém fala, e é por isso que fico irritado, em entrar em forma na mente, na cabeça, fortalecendo os neurônios da memória, os recursos da inteligência e da proficiência profissional. Não, isso não ouço. Entrar em forma nas linhas do corpo parece ser obsessão dos levianos, ou seria mais das levianas? Será que essa gente pensa que "estar em forma" conduz à felicidade ou a casamentos felizes e longevos? Se alguém pensa assim, vai cair feio do cavalo da vida. O que nos dá felicidade, o que nos faz admiráveis no trabalho, o que nos empresta encanto nas relações interpessoais é o "estar em forma na mente".

Na televisão, vivo ouvindo comerciais de produtos de ginástica com apresentadores dizendo que bastam 15 minutos por dia para você perder a barriga, basta um pequeno esforço e lá se vão as celulites, as estrias, as rugas somem com o creme tal e tal e por aí segue o festival de tolices e mentiras.

Nada disso funciona, nada. E se alguém me quiser desafiar, coloco-me como cobaia. Continuarei comendo o que como, fazendo as caretas que faço e quero ver os caras acabarem com a minha barriga ou com as rugas no canto da boca, quero ver. - Ah, mas tu tens que fazer uma dieta para ajudar... Bom, se eu fizer uma dieta não serão os tais aparelhos que me vão fazer ficar em forma, será a minha dieta, bolas... O que incomoda e que ninguém sugere 15 minutos por dia para entrarmos em forma na cabeça, só 15 minutos. Nada. O que sugerem é a boa forma no corpo, coitados dos que ouvem essas mensagens. Vão gastar dinheiro, nada lhes vai mudar e suas cabeças vazias ficarão ainda mais na miséria. E podiam ficar ricas, só com 15 minutos de leitura... por dia.

domingo, 9 de dezembro de 2007

CINEMA - TROPA DE ELITE

Dois textos sobre o polêmico filme Tropa de Elite.
O primeiro texto, de Rodrigo Gomes Guimarães, apresenta os vários olhares da opinião pública e a irritação com a realidade que o filme provoca. Gustavo Henrique Ferreira, autor do segundo texto, se espanta com a popularidade das "máximas falaciosas".


Tropa de Elite, outras tropas e tropos


Mais uma vez um filme que retrata a violência no Brasil provoca comoção. Somos invadidos por e-mails (nós que temos o privilégio ou a falta de escolha de participar de “listas de discussão” eletrônicas) que reclamam para si a “verdade” sobre o filme, ou então sobre o que este não contém de “verdade”. As mídias também são invadidas por comentários, o diretor do filme é entrevistado diversas vezes e tem que responder às mesmas perguntas. A maioria dos comentários sobre o filme Tropa de Elite, lançado em outubro nos cinemas, e visto muito antes, talvez, por milhões de pessoas por meio de cópias piratas compradas ou baixadas na internet, não se contentam em julgar se o filme é bom, interessante, ruim ou péssimo. Afinal, não se trata de um filme sobre gangues em New York, é a imagem que fazemos de nós mesmos que está em jogo aqui. Assim, quem está retratado quer responder, e quem sempre fez as suas imagens sobre a favela, o tráfico, o trabalho dos policiais, quer ver estas imagens reproduzidas na tela poderosa. Rapidamente, tal como o filme Cidade de Deus, tudo cairá no esquecimento da grande maioria, pois os comentários dominantes não saem do senso comum e do inconsciente coletivo nacional; tudo que cai na rede – o inconsciente coletivo nacional - é peixe, é a mesma coisa, portanto esquecida, por não guardar seu diferencial.

O que os comentários todos revelam é múltiplo, obviamente não pode ser tratado aqui de forma integral, mesmo que o espaço fosse vasto. São milhares de olhares, cada um de um lugar, uma classe social, um gênero, um desejo. No entanto, há enunciados que destoam porque se repetem, seja nos comentários, seja nas perguntas levantadas sobre o que é, o que representa, o que deseja inclusive, o filme Tropa de Elite, como se esta “coisa” pudesse falar e representar a si própria. No meio dos comentários, sobressai a vontade de muitos de que um filme dê conta da “realidade”, que demonstre qual é “O” problema da violência no Rio de Janeiro, como se esta realidade pudesse ser completamente conhecida. Pois se temos este conhecimento – e os discursos predominantes revelam que este saber é considerado implícito à realidade – temos também a chave, mágica, de descobrir o que está acontecendo e a solução que vem depois. Sabemos a chave da violência, sua causa e sua solução - este é o inconsciente coletivo brasileiro se apresentando; contra isso o diretor do filme, José Padilha, se irrita dizendo: “Às vezes, escuto essa coisa maluca que é a idéia de que um filme tem que resolver todos os problemas do Brasil” (Gazeta do Povo online, 11/10/2007).

Para as pessoas que acreditam que o problema da violência tem uma Causa, seja ela única ou uma Rede ou Sistema que precisa ser deflagrado pelo conhecimento, como se este fosse total, arrebatador, inexoravelmente impecável em nos direcionar a vida, um filme deveria falar de “tudo”, mostrar “tudo” o que se relaciona com a violência urbana no Rio. Isto não só é impossível, como também a esperança de que haverá uma mudança total e radical de todas as diferentes e divergentes situações que envolvem a questão da violência; é a espera do conhecimento correto para a ação modificadora do mundo – e quanta espera! É a espera pelo “filme final”, ou pelo “conhecimento final” sobre a violência. É a Paz tida como esperança. Mas este não virá, e enquanto isso muita gente vai morrer se a ação não vem primeira. Fazer um filme bem feito sobre a violência é uma forma de ação, não tanto de conhecimento do fim das coisas.

Obviamente, para alguns ao menos, um filme tem várias interpretações possíveis. Não só um filme, como qualquer ação humana. Cada um interpreta a realidade a partir da sua experiência e com base nas capacidades que adquire em sua vida, o que por sua vez é sempre relacionado à sua história pessoal, social, cultural. Não há possibilidade, então, de qualquer interpretação de bens culturais com base, exclusivamente, num filme, ser a interpretação final. O autor de um trabalho cultural não pode ter pleno controle das interpretações dadas à sua obra. Talvez todas as pessoas sejam realmente incapazes de reter uma única perspectiva sobre as coisas, como afirmou Bakhtin. * As opiniões de uma mesma pessoa sobre o filme e sobre outros aspectos da violência em relação à vida podem não se compatibilizar. Teremos certamente aqueles que se identificam com a polícia no filme, com seu aspecto brutal, mas ainda assim reservam críticas a este mesmo aspecto.

Várias foram as condenações do filme como “fascista”, de “direita”, de “esquerda”, inclusive de não ser esquerdista o bastante, por não mostrar “tudo” que precisaria ser mostrado. Elucubrações sobre o Estado (ou a falta dele) e seu papel, entre outras fazem parte das reclamações. Outros esperavam que o filme mostrasse o “outro lado” (o bom?) da história, ou que carregasse “antídotos” contra a sua violência crua. Os que o condenam como “fascista” ou de “direita”, por seu lado, acreditam na reprodução implacável da violência pelo filme, ou mais ainda, na apologia ao crime, alguns até acusando o diretor como fazendo parte de uma conspiração pela violência. A muitos faltou dizer que a culpa pela violência é de quem fala sobre ela. Não aceitam que um filme possa ser feito para mostrar situações, sem que isto signifique dizer que tais situações são perfeitamente justificáveis. Comenta Muniz Sodré: “Fascismo não é um termo esclarecedor do comportamento dos personagens, apesar de sabermos o quanto o perigo do totalitarismo ronda as exceções da lei. O que há mesmo é a realidade de uma guerra cotidiana não formalmente declarada e não suficientemente ponderada pelas elites pensantes” (Observatório da Imprensa online, 09/10/2007). Quando os jovens aplaudem a violência do filme nos cinemas, muitos também torcem por “um lado” e representam a si mesmos como homens de batalha. A guerra existe.

Os brasileiros em grande parte, pela sua longa história cristã, não conseguem receber uma representação qualquer da realidade sem automaticamente julgá-la moralmente. No caso da prática da violência, pouco se consegue empreender ou conversar com as pessoas que escape a julgamentos morais. Assim, logo se procura a explicação das coisas na moralidade. Na situação retratada no filme, portanto, deve haver “bons” e “maus” sujeitos. Se o filme é feito a partir da visão de mundo do “mau” sujeito (e esta seria um interpretação reducionista do personagem Nascimento), só pode ser porque se quer apoiar o mal – interpretam os moralistas. Esta interpretação que condena a apologia à violência no filme, é a mesma que acredita que existem “maus” sujeitos que precisam ser detidos ou exterminados. Como explicação maior da violência é ela própria reprodutora da violência, pois todo discurso é uma prática social viva e atrelada a ações respectivas. Os discursos sobre os “maus” sujeitos como explicação para a violência são uma das múltiplas causas da violência.

O filme não existe num vácuo de interpretação, de história e cultura. As pessoas que estão assistindo são as mesmas, com exceções, que votaram SIM às armas no último plebiscito, e grande parte acredita na violência como um mal a combater principalmente pela violência (sobre isto José Arbex Jr. já nos alertava na Caros Amigos). José Padilha está certo quando teme por uma cultura que acredita que a violência urbana é resolvida pela violência. Ele apostou na inteligência das pessoas fazendo um filme inteligente, porque não aponta “causas” ou “soluções”; deixa-nos pensar, o que poucos cineastas têm conseguido fazer (assim como ele também conseguiu em Ônibus 174, documentário que também mostra como as pessoas acham que a violência contra “bandidos” resolve e é justificada, quando o Sandro é atacado pelos transeuntes enfurecidos). “O filme mostra que as regras atuais e as condições sociais de nossa sociedade nos condenam a repetir continuamente um processo de corrupção e violência policial inaceitável.” - disse Padilha numa entrevista. Se os espectadores preferem torcer pelo “mocinho” ou pelo “bandido”, ou aguardar que o filme mostre um caminho (mesmo quando não sabemos nem como chegamos até aqui), que isto nos faça agir então para transformar estas interpretações reducionistas do mundo em uma gama de ações necessárias para melhorar a vida de todos em relação à violência. Mudar a consciência social dominante sobre a violência, o senso comum que divide a população entre “bons” e “maus”, ao mesmo tempo em que se questiona explicações finais, são ações que podem modificar nossa relação com a violência, incluindo um fator muito importante: a sua naturalização. Não é fechando os olhos que vamos resolver alguma coisa, mas também não é achando que já sabemos o que tem que ser feito. Há muito que fazer, por isto eu agradeço Tropa de Elite por nos irritar mais uma vez com esta realidade. Temos muito por resolver sim. Esperar demais de um filme, no entanto, é o tamanho da alienação e é a distância que separa os comentaristas de filmes das favelas.

Rodrigo Gomes Guimarães é antropólogo, professor da Universidade Estadual Paulista. Não é “mocinho” nem “bandido”.


Sobre a Tropa da Elite

Sim, sem ter as mãos trêmulas, admito que em muito me espanta a popularidade crescente daquele que, como implantado por uns e outros, tem sido classificado como “o filme mais comentado e mais polêmico dos últimos tempos”; ou seja, a tal “Tropa de Elite” (seja o filme; seja o livro: “Elite da Tropa”); e me espanto tanto com o tom vazio, na maioria dos casos, em que são propostos e conduzidos os pretensos debates; quanto com a pérfida ignorância reforçada pelos discursos construídos (entre desmoralizantes tapas na cara, asfixiantes sacos plásticos na cabeça, esquemas lodaçais de corrupção e incontáveis atestados contundentes da inoperância das instituições estatais e para-estatais – e aqui me refiro tanto ‘às polícias’ quanto ‘aos tais comandos’); além das demais desgraças elencadas nas referidas produções. Mas, para clarear o tom das linhas, em nada me espantam os quesitos: ‘violência institucional’, ‘barbárie uniformizada’, ‘caos social’, ‘estado de guerra-civil não declarada’, ‘hierarquia militar forjada à base de torturas físicas, psicológicas e das demais violências simbólicas e materiais’; pois, não de hoje, temos notícias de como as tais estruturas (sejam ‘as militares’, sejam ‘as sociais e urbanas’) vêm sendo moldadas e depreciadas pelos bem sabidos agentes envolvidos (quais sejam, ‘nós mesmos’, ou a tal ‘sociedade organizada’!). E, de fato, o que torna a fita (ou o livro) passível de embrulhos estomacais e desesperantes enxaquecas são as máximas falaciosas (além das anedotas e repetições massificadoras) que foram e vêm sendo forjadas muito mais na (não)interpretação do grande público, do que na construção da narrativa.

A começarmos pelo absurdo de se “chamar (o tal) Capitão Nascimento” para solucionar qualquer problema, a todo e qualquer momento. Algo que bem pode ser o nascimento de um pretenso substituto (tão efêmero quanto regionalista) para frases vazias como: “Valha-me Nossa Senhora” ou “Deus me ajude”. E, além do mais, em muito me assustou a absurda repetição generalizada de que o referido filme havia sido ‘censurado’. Quando, em verdade, o que ocorreu (antes da estréia do mesmo) foi que uma versão (não oficial) do tal “Tropa de Elite” começou a circular na rede mundial de computadores, muito antes da sua estréia nas salas de exibição ao público. E, assim, a ação de piratas em furar a estréia do tal filme virou, na boca do povo, caso de censura para com a referida fita.

Todavia, o pior de tudo recai, também, sobre a idéia empurrada goela à baixo, na contra-mão do bom-senso e da realidade, transferindo para os usuários de entorpecentes a responsabilidade, exclusiva (ou majoritária), pela violência urbana consolidada (ao longo de séculos) no seio da (mal)dita sociedade de mercado. Diz-se, no filme (o que, há tempos, é reforçado com senso comum e com discursos de panfletagem jornalística, ou melhor, com implantes de opinião pública); e repete-se cada vez mais, desde que escolheram o tal filme como algo semelhante à profecia da solução contra o crime organizado e a violência urbana; que: “os usuários de entorpecentes são financiadores da violência”. Pois, o dinheiro arrecadado com o tráfico é investido na aquisição de armamento de guerra e, por conseqüência, para uns, quem mata na tal guerra-civil não declarada não são as balas (dos policias ou dos soldados dos comandos), mas sim as notas de Real, que circulam no referido comércio (ilegal). E sem tecer maiores comentários sobre a legalização de certos entorpecentes (Lei 11.343/06); sem tratar do submundo lucrativo das mais distintas e bem relacionadas mercadorias (sejam lícitas ou ilícitas; sejam armas, pessoas – inteiras ou em partes – ou drogas) e sem tratar das parecerias necessárias entre o comércio ilegal, a lavagem de dinheiro e as instituições financeiras; neste sentido, repetir que “quem financia o tráfico patrocina a violência” é quase a mesma coisa que endossar máximas (falaciosas e absurdas) tais quais: “só com guerra se alcança a paz” e “a guerra contra o terror é o único modo de se combater o terrorismo no mundo”. E Israel, com suas seis décadas de ‘guerra preventiva’ e de ‘combate ao terror’; bem como o caos instaurado no Iraque após a invasão estadunidense, em 2003; e, não menos, as décadas de continuísmos na ingerência do caos social e urbano que alcançou o Rio de Janeiro, há tempos, e que também foi um dos maiores responsáveis pela mudança da capital da república para o interior do território nacional; todos esses eventos, e outras ocorrências similares, são provas cabais de como violência institucional, seja esta explícita e militar ou velada e econômica, não combate, a contento, o caos social.

E, assim sendo, dizer que os usuários de drogas são os agentes assassinos de crianças ou adultos, mortos na guerra-civil (não declarada) em que vivemos, é a mesma coisa que dizer que “quem tem algo a ser roubado (ou furtado) é quem financia e fomenta a violência; e são os (únicos ou maiores) responsáveis pela existência do número absurdo de furtos e assaltos”. E, no mais, se não fossem tão rentáveis as atividades dos narcotraficantes, por certo, o número de assaltos, furtos e seqüestros seriam ainda maiores; posto que, as incursões policiais nas referidas comunidades formadas por “populações em situação de risco” não estão atreladas ao (aquecimento ou resfriamento do) comércio (legal ou ilegal) de narcóticos. Destarte, e inegavelmente, o dinheiro para armar os tais comandos viriam de outras atividades econômicas, licitas ou não. Provavelmente, ou mais possivelmente, seriam sim atividades econômicas ilícitas, mas, de fato, não por conta de mau-caratismo ou de bandidagem inerente, necessária e relativa às tais comunidades em situação de risco; pois, afinal de contas, as atividades ilegais (mesmo de mercadorias que têm sua circulação, há séculos, legalizada) são (inegavelmente) as mais rentáveis (por não serem tão severamente oneradas pelas bem sabidas cargas tributárias; tão temidas e tão combatidas por certos e bem conhecidos setores). E quanto ao caos social, a violência institucional e as demais seqüelas, rapidamente, aqui ventiladas: “Quase dois irmãos”, outro filme nacional, (junto com “Cidade de Deus”, “O prisioneiro da grade de ferro”, “O senhor das armas”, “A Corporação” entre outros, brasileiros ou não) também tem sua parcela de contribuição para dar na construção de uma crítica mais esclarecida sobre ‘instituições estatais ou para-estatais’, ‘guerra-civil não declarada’, ‘caos social’, ‘violência urbana’ e, também, sobre algo mais do que aqui foi dito e que, à torto e à direito, tem sido distorcido frenética e repetidamente, de modo vazio e irresponsável; em detrimento da razão-crítica, do esclarecimento dos fatos e da construção da verdade.

E se insistem uns em atestar que o quê mata na guerra-civil são as notas de Real; alerto (em máxima redundância) para o fato de que nas ditas comunidades de situação de risco não morrem (adultos e crianças) somente por conta de ferimentos causados por disparos de armas de fogo. Não. A miséria, a fome, a ausência das devidas condições e a inexistência, ou a precariedade, do acesso necessário às redes de educação, saúde, lazer, bem estar social e infra-estruturas como água, esgoto, energia elétrica; entre todas as demais e sempre bem lembradas dificuldades; todas essas foices mortais (presenciadas no cotidiano das ditas comunidades que vivem, e não exclusivamente no Brasil, em situação de risco) matam independentemente de tiros. Em silêncio e sem sensacionalismo. E, esse silêncio e toda essa omissão miserável, matam muito mais que os disparos realizados nas trocas de tiros, disparados por bandidos (com ou sem fardas) e atribuídos às notas de Reais acrescidas aos lucros do comércio de drogas (realizados em mansões ou em favelas); notas de Real que chegam também aos lucros (mais que astronômicos) do setor financeiro, no bem conhecido processo de lavagem de dinheiro; quando, costumeiramente, dinheiro sujo, de origem duvidosa ou desconhecida (ou desconsiderada!) é (re)investido em bancos, bolsas de valores e nas demais instituições (tão assassinas quanto) financeiras. Representantes legítimas da Tropa da Elite Social; setores que ainda são os detentores dos meios de implante de opinião no público e dos demais monopólios que reforçam cotidianamente o caos e os abismos sociais.

Gustavo Henrique Ferreira é cientista do direito.

Fonte: revista Caros Amigos. Acesso em 09/12/2007
http://carosamigos.terra.com.br/

* Mikhail Mikhailovich Bakhtin
* (1895 - 1975)- lingüista russo. Saiba mais (inglês).
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