terça-feira, 25 de dezembro de 2007

A atualidade do velho diálogo machadiano: o vazio-pleno da linguagem

Maria Heloísa Martins Dias
Unesp/Ibilce - São José do Rio Preto


Imagino um leitor de fins do século XIX diante de um "texto" como este:

O velho diálogo de Adão e Eva1
Brás Cubas

. . . ?
Virgília
. . . . .
Brás Cubas
. . . . . . . . . . . . .
. . . . . .
Virgília
. . . . . !
Brás Cubas
. . . . . .
Virgília
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Brás Cubas
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Virgília
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Brás Cubas
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. . . . . . . . . . . . . . ! . .
. . ! . . . . . . . . . . . . . .
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Virgília
. . . . . . . . . . . . . ?
Brás Cubas
. . . . . !
Virgília
. . . . . !

Trata-se do capítulo LV do romance Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, como muitos já conhecem e vêm lendo, com o mesmo espanto, talvez, de quem o leu há mais de cem anos. Interessante seria traçar as diferentes formas de recepção do texto e reação dos leitores, ao longo do tempo, diante do texto machadiano, mas esse trabalho foge aos nossos objetivos. Não é muito difícil imaginar essas reações, no entanto, se analisarmos essa curiosa "narrativa" que o autor do Realismo brasileiro oferece para deleite e alimento "ao verme" que roerá "as frias carnes" de seu texto. Pelo menos é esta a dedicatória que Machado nos deixa.

Embora em muitas passagens de seus romances Machado drible o interesse do leitor, despistando-o ou desencorajando-o de se fixar em seu relato, com afirmações do tipo "pule o próximo capítulo", "decida o leitor se quer continuar", "este livro é enfadonho e cheira a sepulcro", "o maior defeito deste livro és tu, leitor", apesar desses aconselhamentos, é impossível passar por cima desse insólito capítulo. Nosso desejo de corroer a obra, não escatologicamente como propõe seu autor, é mais forte do que o abandono, e acaba revelando uma vida que pulsa e irradia sentidos, ao contrário do sepulcro e do tédio anunciados.

A tentação de considerarmos esse capítulo em sua autonomia não deve ser maior que a necessidade de contextualizá-lo, já que sua relação com o conjunto da obra ajuda a iluminar melhor a função e o significado desse momento específico. Ainda mais no caso de Memórias póstumas..., em que os capítulos são "puxados" por um fio de contigüidade montado estrategicamente pelo Autor - processo que, em si mesmo, já mereceria uma bela análise.

Se voltarmos ao capítulo imediatamente anterior ("A Pêndula"), veremos que ele finaliza com a observação do narrador de que seu pensamento, "ardiloso e traquinas" (p.70), voara em direção à casa de Virgília, em cujo peitoril da janela encontrou-se com o pensamento dela com quem ficou a conversar, ambos "a repetirem o velho diálogo de Adão e Eva". Se o leitor espera encontrar a seguir esse diálogo, o que passa a ler é um não-diálogo ou um diálogo que chama a atenção pela singularidade de sua construção. Além do desarme de uma expectativa criada anteriormente no leitor, o capítulo se oferece como excelente exemplo do processo de desautomatização, inerente ao fato artístico, tal como sugeriu Chklóvski em seu famoso ensaio2.

Desautomatizar significa desacomodar os hábitos de condicionamento do sujeito e de percepção do objeto, instaurando novos arranjos e soluções construtivas que perturbem, estranhem ou desfamiliarizem o instituído, o conhecido. Ora, se o ato de leitura se caracteriza por promover o encontro entre paradigmas herdados, assegurados pela tradição e por referências culturais, e novos paradigmas que a obra oferece com sua realização específica, então o "texto" machadiano intensifica o próprio ato de leitura, na medida em que nos estimula a enfrentar esse novo paradigma posto em jogo por sua linguagem. Mas trata-se de um texto não-familiar, portanto, que se desvia dos padrões convencionais ou previsíveis presentes no ato discursivo enquanto tal, para assumir outra forma de atualização. Que forma é essa e como se realiza, provocando efeitos desautomatizadores, é o que veremos agora.

A alusão às figuras bíblicas - Adão e Eva - corresponde à técnica intertextual de Machado, em trazer para seu universo ficcional inúmeras referências culturais (pensadores, filósofos, personagens literárias, escritores etc) que, em Memórias póstumas, mais que nos outros romances talvez, intensifica-se como processo. Mas tal intersecção de fontes diversas não significa erudição ou a confirmação de um saber que se sacraliza, e sim um jogo lúcido com a alteridade, de modo que a presença desses outros incorporados em seu discurso ajuda a construir uma dimensão própria dos sentidos que a obra vai gerando com sua visão múltipla. É a partir daí que Adão e Eva devem ser lidos, como signos colocados dentro de uma nova moldura, na qual a afirmação da fonte se tranforma em negação ou esvaziamento. Se há algo comum entre o par bíblico e as duas personagens machadianas ( a tentação de um amor que se alimenta da interdição, a aproximação feita de distância, culpas e pecados), o próprio vazio da página em que figuram acaba por desfazer.

A colocação dos nomes Brás Cubas e Virgília, intercalados pelos pontos, interrogações e exclamações, sem nenhum suporte discursivo para consubstanciar o diálogo entre eles, enfim, a estranha configuração do texto, é uma falta que se ergue como recusa do instituído. É preciso, portanto, que o leitor saiba redimensionar esse vazio, saiba ler novos sentidos gerados a partir da ausência. Se os interlocutores aparecem destituídos de falas, esse não-dizer iconiza ou constrói a imagem mesma da impossibilidade de entendimento, e o vazio significa a rejeição de dizeres previsíveis e desgastados, que nada acrescentariam à real situação vivida pelas personagens.

Entre Brás Cubas e Virgília o que existe são movimentos constantes de (des)encontros, hesitações, sentimentos contraditórios, entrega e recusa. Digamos que entre eles se constrói um caminho da diferença, que o próprio narrador reconhece, no capítulo LVI, que vem imediatamente após o desse "velho diálogo" que não se realiza. A história entre Brás Cubas e Virgília se resume a encontros, tratos, rompimento de tratos, novos encontros, enfim, oportunidade e acaso testando a maturidade (ou imaturidade?) de ambos: "se nenhum de nós estava verde para o amor, ambos o estávamos para o nosso amor" (p.71). Eis aí a diferença, que não só as frases assinalam (e explicitam mais adiante) como também aquele diálogo inexistente concretiza, de maneira exemplar, por meio de seus vazios. O momento oportuno para ambos, em que se conjugassem desejo e consumação, projeto e realização, emocionalidade e pragmatismo, enfim, esse momento não existe, ou melhor, não pode existir. E essa não-existência concretiza-se, figurativamente, no diálogo construído de maneira tão criativa por Machado.

Brás Cubas e Virgília estão separados por esse espaço que desnarrativiza sua história (pois o discurso é desconstruído), como se impedindo que uma história comum se construa entre eles. Tal procedimento estético, de natureza estrutural, existe em homologia com a situação de ilegalidade que os envolve; é só lembrarmos que Virgília se casara com Lobo Neves, destino que intensifica o amor proibido ("Agora, que todas as leis sociais no-lo impediam, agora é que nos amávamos deveras." - p.72). Portanto, esse impedimento tramado pela história, no plano do enunciado, recebe uma configuração pela trama artística da enunciação proposta com o diálogo interdito.

Mas a alusão à esfera bíblica também é motivada por outos aspectos, internos e externos ao romance machadiano. Sabemos o quanto, para o autor brasileiro, atitudes como desestabilizar valores codificados, relativizar posições absolutas, burlar o sagrado, enfim, tratar ironicamente as convenções, são fundamentais para seu projeto artístico. Desse modo, se Machado desmistifica a própria fonte de que se apropria, ao esvaziá-la de suporte e conteúdo, que são substituídos por uma pontuação intrigante (e vacilante), essa atitude parece vir ao encontro da posição dúbia e rebelde da própria personagem Virgília em relação à religião. Religiosa, mas sem muita convicção, entregue a comportamentos contraditórios que afirmam e negam sua crença, ela parece demonstrar "certo vexame de crer", segundo o narrador Brás Cubas. O fetichismo inconfesso de Virgília (mantinha em sua alcova um oratoriozinho com imagens que jamais comentara com as amigas) e sua crítica às beatas a quem tachava de religiosas, são sinais de uma relação ambígua com a tradição, na qual se confundem autenticidade e fingimento, apego e desapego. Não estará o pseudo diálogo de Adão e Eva, construído por Machado, reproduzindo essa tensão entre falsidade e verdade, crença e descrença, traços do jogo amoroso entre as duas personagens? O não-diálogo funciona como simulacro desse espaço suspenso onde reina a (des)crença.

Por outro lado, se Machado manipula assim lúcida e ludicamente a tradição, resgatando e ao mesmo tempo apagando a fonte de que se serve, como entender o adjetivo "velho" que figura no título do capítulo? Ao se referir ao "velho diálogo de Adão e Eva", Machado parece criar no leitor a expectativa de encontrar um "texto" ou história já conhecida, familiar, isto é, aquela já escrita pelas sagradas escrituras, conseqüentemente, portadora de valores e significados convencionalizados. Mas é aí que o horizonte de expectativa se desfaz, justamente para emancipar3 o leitor ou liberá-lo de sua habitual postura em relação ao objeto apresentado. O "velho" é uma pista falsa, que só existe como ponto de partida para um percurso que será marcado pelo seu contrário, por um percurso que só se justifica na medida em que invalida o conhecido para que ele ressurja reconstruído por uma nova focalização. A nova construção que Machado lhe confere "provoca" o leitor exatamente por se oferecer, não como um acréscimo ou preenchimento de algo, mas como um vácuo, como um não-sentido, como uma perda, um espaço vazio para os sentidos serem colocados, enfim, como uma margem a ser preenchida. Se quisermos aproveitar as colocações de Roland Barthes, poderemos dizer que se trata de uma "margem subversiva" que acentua o "prazer" do texto, já que este atua como um "fading que se apodera do sujeito no imo da fruição."4 É essa falta que estimula a leitura e, no caso do texto em questão, graficamente criada e solicitando um suplemento que possa dar conta das possibilidades não reveladas ou desconstruídas. E se quiséssemos ir mais adiante nesse nosso percurso crítico de leitura, não seria forçado desembocarmos em outro conceito visível nessa estratégia de construção encenada por Machado. Trata-se da desconstrução. Sem entrarmos nas complicadas (e por vezes infrutíferas) discussões acerca dessa noção pós-moderna defendida por Jacques Derrida, podemos apenas recolher traços que nos interessam para a análise, mesmo porque é sempre arriscado aproximar objetos tão distintos como a obra machadiana e a teoria derridaneana.

Na verdade, Machado apaga os sentidos por essa espécie de descarte do verbal e é isso que chama a atenção do leitor, pelo menos daquele leitor atento, para quem uma obra significa em todos os seus movimentos e processos de feitura, ou seja, o leitor que não tem pressa em ir adiante só para ver o que acontece com a história, mas ao contrário, pára e demora-se em observar o que não acontece ou o que se mostra vazio.

Se olharmos assim para o capítulo LV de Memórias póstumas, veremos que o estranhamento de sua construção, ou melhor, de sua desconstrução, é revelador, afinal, de uma concepção de obra de que talvez nem mesmo Machado de Assis tenha se dado conta. Parece que essa encenação com as margens, então libertas de conteúdos pré-fixados, quer mostrar uma obra que não se faz como reflexo do mundo ou resposta a ele, mas como uma pergunta sempre formulada, como inquietações que não se preenchem plena ou imediatamente. O "diálogo" já não é apenas entre Adão e Eva ou Brás Cubas e Virgília, mas também entre autor e obra, e mais ainda, texto e leitor. Um diálogo que não se cumpre nos moldes ideais (nem tradicionais) porque a consciência crítica, numa lucidez permanentemente zombeteira e desconfiada, não se conforma com o dado ou já visto. Mais do que respostas ou soluções, há um percurso de busca que se satisfaz com a distância e a ausência, não para desistir dos resultados, mas para inscrevê-los num devir que os transforma constantemente.

Notas

1. Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas, São Paulo, Ática, 1981, 8ª ed, p. 71

2. "A arte como procedimento", Teoria da literatura: formalistas russos, Porto Alegre, Globo, 1973, pp. 39-56.

3. Refiro-me às noções propostas por Hans Robert Jauss, em seus estudos centrados na estética da recepção.

4. O prazer do texto, São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 13.


Fonte: http://www.geocities.com/ail_br/aatualidadedovelhodialogomachadiano.htm

Acessado em 25 de dezembro de 2007

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