segunda-feira, 28 de abril de 2008

Machado de Assis

Revista Imprensa - edição de 07-08/2003

Colunista Fernando Jorge
Machado de Assis também cometeu muitos erros de português

Segundo me informaram vários estudantes dos cursos de jornalismo, os seus professores têm o hábito de dizer:

- Leiam os livros de Machado de Assis, para que vocês possam escrever bem. Ele é um escritor sutil, perfeito, incomparável, e nunca errou ao manejar o nosso idioma.

A afirmativa desses professores é desprovida de fundamento. Machado de Assis, em tal sentido, errou não apenas pouco, mas bastante. Não existe no planeta Terra , e nunca existiu, um escritor perfeito. Todos erram, inclusive eu, o autor destas linhas. Aliás, o único escritor perfeito é Deus, que entregou a Moisés, no cume do Monte Sinai, os dez mandamentos da sua lei, gravados em dois pedaços de pedra...

Fui amigo e aluno do professor Silveira Bueno, catedrático de Filologia Portuguesa da Universidade de São Paulo. Certa vez ele me incumbiu de descobrir erros de português em qualquer obra de Machado de Assis. Escolhi o livro Crítica teatral, na edição de 1959 da Editora W. M. Jackson. Nesta obra estão reunidas as crônicas sobre peças de teatro que o autor de Quincas Borba escreveu para O Espelho, a Revista Brasileira, o Diário do Rio de Janeiro e outras publicações da imprensa carioca.

Li minuciosamente o livro e apresentei a Silveira Bueno o meu trabalho, acrescido depois com mais alguns erros de Machado de Assis, descobertos pelo professor.

Na página 27 há um erro na seguinte frase:

"Henriqueta Bernard é uma rapariga aldeã que vivia no regaço da paz em casa de seus pais, um honrado vendedor de trigos, e uma matrona respeitável, a Sra. Marta".

O plural trigos aí é incorreto, pois não se diz "vendedor de feijões" ou "vendedor de arrozes". Usamos o singular: "vendedor de trigo", "vendedor de feijão", "vendedor de arroz". E "uma matrona", no fim da frase, gerou o cacófato "mama".

Um erro de regência verbal foi cometido por Machado de Assis, conforme podemos ver na mesma página 27:

"Não tendo nada a perder, mas tudo a ganhar, este homem arrisca tudo, e não se lhe dá dos meios, visando o fim..."

Aqui, no sentido de pretender, de se propor, o verbo visar é transitivo indireto e é regido pela preposição a, quer o objeto seja constituído de substantivo, quer de infinitivo:

"Tinha anseios e desejos, mas anseios e desejos acentuados, visando a objetivo certo" (Júlio Ribeiro, A carne, página 95).

"A educação profissional visa aos interesses e exigências da vida" (Ernesto Carneiro Ribeiro, Páginas de língua e de educação, página 85).

Daí concluímos que Machado de Assis, em vez de escrever "visando o fim", deveria ter escrito "visando ao fim".

Em seguida, na página 28 do livro Crítica teatral, achei estes períodos:

"O estrangeiro é uma figura grave e circunspecta...A primeira vez que se encontrou só com Henriqueta na sala da cabana, exerceu ele a sua ação simpática sobre ela por intermédio do qual pôs-se em contato com ocorrências absolutamente estranhas ao drama".

Bem claro é o erro de Machado, porque na segunda frase não vemos a atração do pronome, exigida pelo relativo qual. Ficaria correto assim:

"...exerceu ele a sua ação simpática sobre ela, por intermédio da qual se pôs em contato com ocorrências..."

Melhorou? Sim, ficou inteligível, porque eu coloquei uma vírgula depois de ela e substitui o do qual por da qual. Vírgulas, em diversos textos, são os mal colocados sinais de trânsito do idioma, e por este motivo causam acidentes gramaticais.

Surge adiante, na página 36 do livro, um infinitivo pessoal errado:

"Os olhos da platéia já estão fatigados de oscilarem entre decorações gastas e importunas".

Um erro bem visível, porque o infinitivo pessoal correto é oscilar.

Percorrendo com cuidado o texto de Crítica teatral, vi na página 109 este erro de sintaxe:

"Agora, que o governo estenda a mão ao punhado de artistas que em tão larga empresa se deitam".

Vamos corrigir: o certo é "que a tão larga empresa se deitam", pois o verbo deitar, no sentido de se abalançar, de se aventurar, além de ser pronominal, exige a preposição a.

Logo depois, na página 110, Machado de Assis cometeu um erro primário:

"Há na moderna literatura dramática uma cabeça onde a faculdade produtiva levantou-se..."

Ele não seguiu esta regra bem simples: o advérbio onde atrai o pronome se. Portanto, o certo é "onde a faculdade produtiva se levantou".

Sempre munido de filosófica paciência, li na abertura de uma crônica, ao fixar os olhos na página 139:

"Estamos em festa e como que os teatros se apostaram para não nos darem novidade alguma".

Ora, o verbo apostar, como transitivo indireto, rege complemento com a preposição em. A frase de Machado de Assis seria correta, incriticável, se ele a tivesse escrito deste modo:

"Estamos em festa e como que os teatros se apostaram em não nos dar novidade alguma".

Fiz duas correções. Eliminei a preposição para e a substituí pela preposição em. Também pus o infinito dar, verbo augusto, no trono do horroroso darem, que joguei no lixo...

Ainda nessa crônica, na página 140, pude ler isto:

"Entretanto confesso que um egoísmo puramente físico, ou por outra, um instinto de conservação faz-me ver um céu de coisas velhas."

Machado de Assis, no trecho acima, devia ter deixado a conjunção que, embora distante, atrair o pronome do verbo fazer, imitando o exemplo fornecido por Rui Barbosa numa conferência:

"Verdadeiramente semidivina só veio a ser a mocidade, depois que, pela transfiguração cristã e científica do homem, se fez alegria, generosidade e esperança" (Conferência pronunciada em 24 de maio de 1897 no Politeama Baiano).

Analise agora, prezado leitor, estas linhas da página 144 do livro Crítica teatral:

"Então, a crítica aplaudida ontem, é hoje ludibriada, o crítico vendeu-se, ou por outra, não passa de um ignorante a quem por compaixão se deu algumas migalhas de aplauso".

Novo erro de Machado de Assis, e erro grave. Como o verbo precisa concordar com o sujeito, atrevi-me a corrigir a sua frase: "...não passa de um ignorante a que por compaixão se deram algumas medalhas de aplauso".

O autor de A mão e a luva, na página 155, cometeu dois erros de português. Eis o primeiro: "...amor casto e honesto para sufocar-lhe as aspirações..."

A preposição para atrai o pronome lhe: "para lhe sufocar".

Eis o segundo erro, idêntico ao da página 27, quando ele empregou o verbo visar: "Não visa o ouro do opulento..."

Que a sua alma gentil me perdoe, mas tão severo como o mais intransigente dos gramáticos, eu quis logo corrigi-lo:

"Não visa ao ouro do opulento..."

Descobri outro erro de sintaxe, como o da página 109, na página 175:

"Não se contrarie as disposições naturais da vida..."

O verbo, nesta frase, deixou de concordar com o sujeito. É assim que Machado deveria ter escrito:

"Não se contrariem as disposições naturais da vida..."

Voltarei ao assunto. O sociólogo inglês Samuel Smiles (1812 - 1904) estava certo quando declarou na sua obra Self - Help:

"Mais sabedoria nos ensina o erro do que o êxito".

("We learn wisdom from failure much more than from success").

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