sábado, 13 de setembro de 2008

eterno PIQUENIQUE

Por Airton Soares

Barzinho da Dona Heloísa. Nas cercanias do meu `monastério´. Tomava uma cerveja. Sozinho. Ao me retirar, escuto cochichos: - Quem é? - É o professor... Só viive estudaando... Sei que as reticências e a duplicação das vogais já dizem tudo, mas faço questão de ser redundante: O tom de voz denotava piedade. Muita!

Neste mundo, essencialmente dionísico, quem gosta de estudar e que não demonstra envolvimento com as excessivas práticas bacantes é visto como um sofredor. Nada mais falso. O estudo requer muito trabalho. Trabalho “pesado” é verdade. A etimologia constata que pensar quer dizer `sopesar´ com sentido de colocar na balança alguma coisa para se avaliar o seu peso. Daí a expressão: estou com a consciência pesada. Mas, o fato dessa coisa dar trabalho pesado, não significa sofrimento. Fosse assim, ninguém fazia piquenique. Qualquer atividade prazerosa dar tanto trabalho como outra qualquer.

O segredo: Faça de sua vida um piquenique e aprenda a conviver com as próvidas formigas. Assim, equilibrar o Dioniso e o Apolo existentes em cada um de nós é, a meu ver, o eterno piquenique da vida.

indexada

SIGLA - ME

Por Airton Soares

Sigla era a letra inicial empregada como signo de abreviação nas inscrições e nos manuscritos antigos e que geralmente tinha conotação mística. Citemos como exemplo a “Antiga e Mística Ordem Rosae Crucis, AMORC” - Fraternidade dedicada ao desenvolvimento das potencialidades do ser humano.

Mas o tempo foi passando... passando... e o homem resolveu espichar a sigla. Hoje dispomos nas prateleiras dos dicionários `bigla´, que é o vocábulo composto com as duas primeiras letras de cada palavra fundamental , e a `trigla´, vocábulo composto com as três primeiras... E, se não bastasse, acrônimo, monograma, siglônimo. Afinal, a língua é viva... muito viva!

Aqui no Brasil temos muitas siglas famosas. Uma delas, como todos sabem, é “FHC” que acaba de ganhar uma co-irmã internacional: “LHC” (Grande Colisor de Hádrons), a máquina mais poderosa do mundo que tentará reproduzir o Big Bang, a explosão que deu origem ao Universo.

Por fim, não poderia deixar de citar a nossa sigla (AFAI*) que, na boca do confrade Paulo Rocha, passou a significar - também - um irresistível substantivo feminino: afaijoada!

*AFAI - Associação dos Filhos e Amigos de Ipu

indexada

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Memórias da escola

Fonte: foto e texto <> revista EDUCAÇÃO

Um professor que ditava porque sabia mais que os livros. E outro que contava os inauditos meandros da história

Rubem Alves

Lembro-me com prazer de um efêmero professor de história. Era o desleixo na roupa, na barba e na fala. Sua aparência física era o normal pelo avesso. Ensinava história ao contrário. Ditava as aulas como os outros. Por razões totalmente diferentes. Os outros ditavam porque não sabiam o que era ensinar e nem o que era aprender.

Ele ditava porque o que tinha a ensinar não se encontrava nos livros. Ele ensinava uma história proibida. Paul Veyne publicou o livro Comment on écrit l'histoire em 1971 (Éditions du Seuil )." Está lá: "História não existe. Há somente 'histórias de'... Os fatos não existem. A única coisa que há são intrigas...".
Intrigas daqueles que escrevem para os que têm poder. Quase um século antes Nietzsche já havia afirmado: " Contra o positivismo que diz 'só há fatos', eu diria: não, são precisamente os fatos que não existem, apenas interpretações...". Foi isso que aquele professor ao avesso me ensinou mais de 20 anos antes do livro de Veyne.

"Vocês acham mesmo que o imperador Pedro I estava montado a cavalo no alto de um morro e que ele puxou da espada e gritou 'Independência ou Morte?' A história não acontece segundo a pintam os pintores por encomenda. O imperador estava com uma diarréia terrível e o que ele falou foi uma série de palavrões e maldições contra o seu pai, em meio a explosões de fezes e ventilações mal-cheirosas. Os livros de história dizem que cada herói falou uma frase célebre. "Como é para o bem de todos e a felicidade geral da nação diga ao povo que fico..." "O Brasil espera que cada um cumpra o seu dever!" Será que havia sempre um escriba acompanhando os heróis para registrar seus súbitos arroubos literários?". No semestre seguinte ele não voltou. Acho que o colégio não aprovava professores que ensinavam história pelo avesso.

Lembro-me também do Leônidas Sobrinho Porto, de sorriso de criança e rosto rechonchudo. Começou sua primeira aula assim: "Há dois assuntos preliminares que precisamos resolver de início para que possamos nos dedicar ao que importa. O primeiro deles é a presença. Todos vocês já têm 100% de presença. E o segundo são as provas e as notas. Todos vocês já passaram. Resolvidas essas questões irrelevantes que perturbam o prazer de aprender podemos agora nos dedicar ao que interessa: literatura...". E aí começou. Ele não ensinava literatura. Não discorria sobre escolas literárias. Não prescrevia leituras a serem feitas e fichamentos.

O professor Leônidas se transformava em literatura. Ator. Ria e sofria os seus personagens. E nós ficávamos em silêncio absoluto, enfeitiçados, como se estivéssemos num teatro. Lembro-me dele vivendo o amor de Cirano de Bergerac por Roxana. "Beijo é o ponto róseo no 'i' da palavra 'paixão'..." E ele explicava que no francês não era "paixão"; era "amor", "aimer". Melhor seria "o beijo é o ponto róseo no 'i' da palavra amor". Mas em português "amor" não tem 'i'... Não nos ensinou literatura. Ensinou-nos a amar a literatura. Por isso nunca esqueci. Também foi só um semestre. Nunca mais o vi. É possível que tenha sido mandado embora pela direção do colégio por justa causa: suas cadernetas de presença eram falsas e suas notas também eram falsas. Permite-se que o ensino de literatura seja falso. O que não se permite é que as cadernetas de presença e as notas o sejam. O evangelho dos burocratas começa assim: "No princípio era o relatório..."