sábado, 20 de agosto de 2011

A gente não quer só comida

"Nós pega o peixe", "a gente pega o peixe", "nós pegamos o peixe"... Em meio a tanta polêmica sobre um livro que estaria ensinando o português errado aos alunos, uma nova discussão se abre. Como os conhecimentos históricos podem contribuir para o debate?

Por Edmar Cialdine




Toda língua viva muda. Isso é um fato e o dicionário eletrônico Aulete define fato como “O que é real ou verdadeiro, realidade, verdade” e ainda “Ocorrência, evento observado objetiva ou cientificamente”. Eu diria que a mudança linguística é um evento observado e observável, ou seja, está aí para quem quiser ver. Mas é preciso que se acrescente, também, que “língua viva” é toda e qualquer língua em uso – haja ou não falantes nativos. Existem inúmeros estudiosos que realizaram pesquisas que comprovem tais mudanças, mas não será preciso recorrer a eles. Basta observarmos alguns exemplos que possam nos chamar a atenção. Encontramos em texto do grande escritor Luís de Camões expressões como “pranta” e “frauta”. Hoje, a gramática tradicional (prescritivista) prega, como correto, “planta” e “flauta” – isso significaria que Camões, o escritor de “Os Lusíadas” usava um português errado em sua obra? Como e por que ocorreu essa mudança? Se remetermos ao latim, língua-mãe de nosso idioma pátrio e muitos outros, teremos palavras como “clavus”, que deu origem a palavra “cravo” (prego).

Esses são apenas alguns exemplos ilustrativos de como as mudanças que a língua sofre no tempo podem influenciar nossa opinião sobre ela. Na verdade, o que gostaria mesmo de falar é sobre a polêmica que surgiu a partir do livro Por uma Vida Melhor da coleção “Viver, aprender”, de vários autores (dentre eles Heloísa Ramos). Tal obra foi distribuída pelo MEC para a educação de jovens e adultos e, em seu capítulo 01, de acordo com vários jornalistas, “assassina a língua portuguesa ao incentivar o uso de ‘nós pega o peixe’ como correto” – para quem gosta de sensacionalismos, foi perfeito. Contudo, o que se ignora na obra é que, no mesmo capítulo, o livro trata sobre as diferenças entre a fala e a escrita, o que é a norma culta, as variações linguísticas etc. Em um trecho, sobre o uso de “os livro” encontramos: “Você pode estar se perguntando: ‘Mas eu posso falar ‘os livro?’ Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico(...). O falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião.” A obra portanto trata da adequação do usuário da língua ao contexto. Ora, um médico dificilmente conseguiria combater a dengue em uma comunidade de baixo nível escolar caso fizesse uso de um jargão técnico. O que não significa que iremos ignorar o baixo nível escolar dessa comunidade e deixar as coisas como estão – lembrem-se, estamos falando de adequação linguística. Saber conversar com uma pessoa com baixo conhecimento e também com uma pessoa formada, com PhD, é sinal de competência linguística. O problema, então, seria o extremismo: ou apenas a norma culta, ou apenas a norma popular – o que vai de encontro à, insisto, adequação linguística. Dito isso, vejamos como um conhecimento histórico da língua pode nos ajudar a enriquecer o debate.

As línguas de origem indo-europeia, como as línguas germânicas (inglês, alemão, dentre outras), o grego, o latim e as línguas neolatinas, possuem uma tendência a se tornarem mais simples em sua estrutura. Explicando melhor. As línguas mais antigas dessa família tinham uma característica em comum, a grande quantidade de flexões existentes.

Havia flexões para gêneros, números, casos, vozes verbais, tempos, modos, dentre tantas outras categorias gramaticais. Com o tempo, a quantidade de flexões foi diminuindo. Por exemplo os casos latinos. A princípio se usavam desinências para determinar a função sintática dos substantivos: “lupi” (que pertence ao lobo), caso genitivo, ou “lupo” (oferecido ao lobo), caso dativo. Com o tempo, as preposições passaram a exercer essas funções e a flexão caiu em desuso: “de lupu” e “ad lupu”, respectivamente. A tendência em reduzir os casos é perceptível se levarmos de conta que, nos primórdios do latim, havia os casos nominativo, vocativo, genitivo, acusativo, ablativo, locativo, instrumental e dativo; mas, no período clássico, os casos locativo e instrumental desapareceram; e, posteriormente, o vocativo, que já possuía a mesma forma do nominativo em praticamente todas as palavras, também desapareceu. Pouco antes de o latim desaparecer como língua falada, apenas os casos nominativo e acusativo restavam. A principal consequência desse processo foi, como já mencionamos, o uso extensivo das preposições e, ainda, o estabelecimento de uma ordem sintática canônica: “sujeito – verbo – objeto”.

De igual modo podemos falar sobre os verbos e o uso dos pronomes. Em termos práticos, os pronomes (pessoais do caso reto) tinham uso restrito, apenas para enfatizar o sujeito da ação ou para fazer uma oposição com outro elemento ou pronome. Era possível identificar o sujeito da oração graças à desinência número-pessoal. Contudo, o uso extensivo dos pronomes fez com que as formas verbais ficassem cada vez mais simples. Esse processo tem ocorrido com todas as línguas de origem indo-europeia, algumas de forma mais rápida que outras. Hoje em dia, temos, em inglês o uso obrigatório do pronome pessoal até em verbos impessoais como em “it rains” (“chove”) e, de modo geral, apenas uma ou duas formas verbais. Sendo assim, o uso cada vez mais amplo dos pronomes em português tem feito com que as formas verbais passassem por um processo de mudança linguística. Basta notar a troca da segunda pessoa do plural “vós”, por “vocês” e a confusão entre “tu” e “você”. De fato, a linguagem popular reduziu as formas verbais para: “eu estudo”, “tu/ você estuda”, “ela/ ela estuda”, “nós/ a gente estuda”, “vocês estuda”, “eles/ elas estudam” – e ninguém deixa de ser compreendido por causa disso. Agora, é claro que, em uma situação formal, devemos usar as formas verbais flexionadas tradicionais – o que pode até dispensar o uso de pronomes: “Fizemos o dever de casa, professor”, no lugar de “a gente fez o dever de casa”. Claro que o usuário competente saberá relacionar bem a forma e a função para se comunicar.

Um último exemplo que gostaria de apontar é da palavra presidente, tão usada no feminino hoje. Essa palavra é, na verdade, comum de dois gêneros, isto é, temos o presidente e a presidente – sendo assim, “presidenta”, uma forma errada. Será? É certo que, como muitas palavras terminadas em “-ente”, ela tem origem no particípio presente do verbo latino “praesideo” (sentar-se em primeiro lugar, à frente, ou seja, presidir): “praesens, praesidentis” (aquele que preside). Tal palavra faz parte de um grupo que funciona como adjetivos uniformes, isto é, igual para todos os gêneros. De modo não tão diferente, palavras terminadas em “-or”, como senhor e professor, não possuíam feminino em sua origem. Porém, por analogia a diversas outras palavras, surgiu a forma do feminino com “-a”. Hoje em dia, chega a ser estranho, em espanhol, “professor” ser uma palavra usada tanto para homens quanto para mulheres. Assim sendo, se “presidenta” se fixará na língua ou não só o tempo e seus usuários poderão dizer.

Gostaria, por fim, de dizer o que falei aos meus alunos do curso de Letras, futuros professores de português, quando questionado sobre a polêmica do livro: o papel do professor é formar usuários competentes da língua. Negar ao aluno o uso de sua variação materna, da norma padrão ou de qualquer variação linguística é privar o aluno da riqueza de sua própria língua. Devemos, sim, ensiná-los a usar a língua em todas as situações, formais ou informais.


Francisco Edmar Cialdine Arruda é professor da Universidade Regional do Cariri, mestre em Linguística aplicada pela Universidade Estadual do Ceará e pesquisador do Grupo de Pesquisa em Lexicografia, Terminologia e Ensino (LETENS) e do Núcleo de Pesquisas em Linguística Aplicada (LiA), atuando principalmente com os temas Terminologia, Lexicografia, Surdez, Multimodalidade e Estudos clássicos. Contato: ed0904@gmail.com

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