terça-feira, 29 de julho de 2008

Livro: O Mundo dos LIVROS

(22/7/2008)
Diário do Nordeste


Batista de Lima
Assombroso Mundo dos vivos

Houve um tempo em que tínhamos medo dos mortos. As almas penadas viviam zanzando à noite nas encruzilhadas, nas portas dos cemitérios, nas casas velhas e em qualquer lugar onde a escuridão trevasse. Quem não tinha medo dessas almas, é porque estava armado com as famosas palavras: ´Quem pode mais que Deus?´ Isso era o bastante para a alma responder: ´Ninguém!´. Muitas vezes esse era o começo de um diálogo que terminava com o pedido da alma para o desenterro de uma botija, ou o paga de uma promessa não cumprida. Hoje o medo das pessoas não é mais dos mortos, e sim dos vivos. Hoje se vive preso por conta dos vivos que andam soltos.

Atento a esse fenômeno, Carlos Roberto Vazconcelos intitulou seu livro de contos de Mundo dos Vivos, já que suas narrativas giram em torno de peripécias periculosas praticadas por aqueles que nos circundam. A publicação é da Expressão Gráfica e Editora, neste 2008, que em 115 páginas, deixa escorrer 32 histórias curtas que trazem à tona mistérios e escombros deste nosso mundo dos vivos.

Dos escombros desse mundo depauperado, emergem ´seres aflitos, vivendo a sensação da impossibilidade, no limite extremo e terrível entre o chão e o pulo´, conforme afirma Juarez Leitão, nas orelhas do livro. Já no prefácio, o saudoso Alcides Pinto prospecta nos contos, ´um sensualismo por vezes mórbido, por vezes dramático a percorrer a epiderme das personagens´. Não foi pois sem razão que essa coletânea de narrativas de Carlos Roberto ganhou o Prêmio Osmundo Pontes de Literatura, em 2007. Esse, no entanto, não é o primeiro prêmio literário ganho pelo autor. Afinal, desde o tempo de estudante, em sua terra natal, Tianguá, que ele vem ganhando certames literários, com suas narrativas que já pontificaram publicadas em antologias, revistas e jornais de nossa terra.

As narrativas desse primeiro livro de Carlos Roberto Vazconcelos são curtas, à moda Dalton Trevisan, mas carregadas de momentos inusitados, como armadilhas, tocaias e demais surpresas que surpreendem o leitor, como inclusive seu próprio sobrenome que é um ´Vazconcelos´ com ´Z´ e não com ´S´. Das tocaias da escritura às da pistolagem explícita dos nossos sertões , o autor trafega sem tropeços, mostrando seu conhecimento da arte de narrar em sintonia com os conheceres do grande sertão que nunca desgruda dos costados de quem nele nasceu.


Interessante é a epígrafe do livro, retirada de Máximo Gorki, que fiz: ´O que é pena é a vida mostrar-se pelo pior lado´. Coerentes com esse dizer, os contos vão mostrando do que são capazes certos viventes que nos cercam e que maculam muitas vezes o que há de belo e romântico em nossas vidas. Vivemos hoje sitiados nesse mundo dos vivos onde a inocência se enclausura em verdadeiras trincheiras para sobreviver à maledicência que impera nas ruas. Carlos Roberto atento a esse paradoxo mostra as entranhas de um cotidiano submerso em violências.

Esse cotidiano de violência possui razões sociais como a má distribuição da renda, mas há também razões familiares, desajustes que começam na falta de convívio harmonioso entre casais. Em ´Perdas e danos´ está uma das razões: ´Meu pai nunca fumou. Um belo dia, saiu para comprar cigarro e nunca mais voltou´. Esse é o primeiro episódio de que se lembra o personagem que termina por se tornar um frio matador. Mata as pessoas com uma frieza que cresce à proporção que vai fazendo vítimas. Lá pelas tantas, no entanto, ele conclui: ´... em minha vida tudo foi sempre tarde demais. Tarde demais para ser criança, tarde demais para ser família´.
Outros tipos de violência vão sendo tratados no livro. Assim é o caso de ´Em nome do Pai... e do Coronel´. O pistoleiro é instado a fazer sua última missão, e vacila. A serenidade da idade madura é o que move o interesse do pistoleiro aposentado a uma tentativa de não se envolver mais com tocaias. Essa violência é a mesma que leva o marido a sacrificar a esposa quando descobre que ela está grávida, mesmo sendo ele um homem estéril. E assim vão desfilando histórias sempre marcadas pela presença de tânatos, como a do personagem descrevendo sua própria morte em ´A inescrutável face da morte´.

Essa morte é ´um escorregão idiota num dia de sol´. Essa morte está sempre se contrapondo a uma vida que teima em vingar. É um jogo de contrastes que se torna uma das marcas do estilo do autor. Por exemplo: ´Nunca me senti tão pequeno. Jamais chorei tão grande (...) Saí do sono como quem entra num pesadelo´. ´Minha mãe perdia peso e eu ganhava nome (...) Perdi também um irmãozinho antes mesmo de ganhá-lo´.


Com relação ao perfil de seus personagens, Carlos Roberto sempre os surpreende em seus momentos culminantes. São criaturas que estão com um pé no abismo. Ou pelo envelhecimento, ou pelo risco de vida que a situação impõe. Quando não é essa culminância, é uma situação inusitada que põe o personagem num patamar diferente do senso comum. É o caso do escrevinhador que escreve cartas para si próprio. ´Não vejo a hora de postar esta carta e voltar imediatamente para recebê-la´. Ou ainda o personagem que emagrece ao ler Dom Quixote. Então a mãe começa por esconder livros grandes para preservar a saúde do filho. Essa situação nos remete ao próprio Dom Quixote, no episódio em que os delírios do cavaleiro da triste figura são atribuídos às suas leituras. Então queimam-lhe os livros.

Por fim chega-se ao final do livro de Carlos Roberto com aquela vontade de encontrar outras histórias a mais. O bom narrador tem essa característica, despertar no receptor a fome de mais querer histórias. Daí que fica o pedido para saciar essa ânsia, que venha logo o próximo livro.

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