domingo, 9 de dezembro de 2007

CINEMA - TROPA DE ELITE

Dois textos sobre o polêmico filme Tropa de Elite.
O primeiro texto, de Rodrigo Gomes Guimarães, apresenta os vários olhares da opinião pública e a irritação com a realidade que o filme provoca. Gustavo Henrique Ferreira, autor do segundo texto, se espanta com a popularidade das "máximas falaciosas".


Tropa de Elite, outras tropas e tropos


Mais uma vez um filme que retrata a violência no Brasil provoca comoção. Somos invadidos por e-mails (nós que temos o privilégio ou a falta de escolha de participar de “listas de discussão” eletrônicas) que reclamam para si a “verdade” sobre o filme, ou então sobre o que este não contém de “verdade”. As mídias também são invadidas por comentários, o diretor do filme é entrevistado diversas vezes e tem que responder às mesmas perguntas. A maioria dos comentários sobre o filme Tropa de Elite, lançado em outubro nos cinemas, e visto muito antes, talvez, por milhões de pessoas por meio de cópias piratas compradas ou baixadas na internet, não se contentam em julgar se o filme é bom, interessante, ruim ou péssimo. Afinal, não se trata de um filme sobre gangues em New York, é a imagem que fazemos de nós mesmos que está em jogo aqui. Assim, quem está retratado quer responder, e quem sempre fez as suas imagens sobre a favela, o tráfico, o trabalho dos policiais, quer ver estas imagens reproduzidas na tela poderosa. Rapidamente, tal como o filme Cidade de Deus, tudo cairá no esquecimento da grande maioria, pois os comentários dominantes não saem do senso comum e do inconsciente coletivo nacional; tudo que cai na rede – o inconsciente coletivo nacional - é peixe, é a mesma coisa, portanto esquecida, por não guardar seu diferencial.

O que os comentários todos revelam é múltiplo, obviamente não pode ser tratado aqui de forma integral, mesmo que o espaço fosse vasto. São milhares de olhares, cada um de um lugar, uma classe social, um gênero, um desejo. No entanto, há enunciados que destoam porque se repetem, seja nos comentários, seja nas perguntas levantadas sobre o que é, o que representa, o que deseja inclusive, o filme Tropa de Elite, como se esta “coisa” pudesse falar e representar a si própria. No meio dos comentários, sobressai a vontade de muitos de que um filme dê conta da “realidade”, que demonstre qual é “O” problema da violência no Rio de Janeiro, como se esta realidade pudesse ser completamente conhecida. Pois se temos este conhecimento – e os discursos predominantes revelam que este saber é considerado implícito à realidade – temos também a chave, mágica, de descobrir o que está acontecendo e a solução que vem depois. Sabemos a chave da violência, sua causa e sua solução - este é o inconsciente coletivo brasileiro se apresentando; contra isso o diretor do filme, José Padilha, se irrita dizendo: “Às vezes, escuto essa coisa maluca que é a idéia de que um filme tem que resolver todos os problemas do Brasil” (Gazeta do Povo online, 11/10/2007).

Para as pessoas que acreditam que o problema da violência tem uma Causa, seja ela única ou uma Rede ou Sistema que precisa ser deflagrado pelo conhecimento, como se este fosse total, arrebatador, inexoravelmente impecável em nos direcionar a vida, um filme deveria falar de “tudo”, mostrar “tudo” o que se relaciona com a violência urbana no Rio. Isto não só é impossível, como também a esperança de que haverá uma mudança total e radical de todas as diferentes e divergentes situações que envolvem a questão da violência; é a espera do conhecimento correto para a ação modificadora do mundo – e quanta espera! É a espera pelo “filme final”, ou pelo “conhecimento final” sobre a violência. É a Paz tida como esperança. Mas este não virá, e enquanto isso muita gente vai morrer se a ação não vem primeira. Fazer um filme bem feito sobre a violência é uma forma de ação, não tanto de conhecimento do fim das coisas.

Obviamente, para alguns ao menos, um filme tem várias interpretações possíveis. Não só um filme, como qualquer ação humana. Cada um interpreta a realidade a partir da sua experiência e com base nas capacidades que adquire em sua vida, o que por sua vez é sempre relacionado à sua história pessoal, social, cultural. Não há possibilidade, então, de qualquer interpretação de bens culturais com base, exclusivamente, num filme, ser a interpretação final. O autor de um trabalho cultural não pode ter pleno controle das interpretações dadas à sua obra. Talvez todas as pessoas sejam realmente incapazes de reter uma única perspectiva sobre as coisas, como afirmou Bakhtin. * As opiniões de uma mesma pessoa sobre o filme e sobre outros aspectos da violência em relação à vida podem não se compatibilizar. Teremos certamente aqueles que se identificam com a polícia no filme, com seu aspecto brutal, mas ainda assim reservam críticas a este mesmo aspecto.

Várias foram as condenações do filme como “fascista”, de “direita”, de “esquerda”, inclusive de não ser esquerdista o bastante, por não mostrar “tudo” que precisaria ser mostrado. Elucubrações sobre o Estado (ou a falta dele) e seu papel, entre outras fazem parte das reclamações. Outros esperavam que o filme mostrasse o “outro lado” (o bom?) da história, ou que carregasse “antídotos” contra a sua violência crua. Os que o condenam como “fascista” ou de “direita”, por seu lado, acreditam na reprodução implacável da violência pelo filme, ou mais ainda, na apologia ao crime, alguns até acusando o diretor como fazendo parte de uma conspiração pela violência. A muitos faltou dizer que a culpa pela violência é de quem fala sobre ela. Não aceitam que um filme possa ser feito para mostrar situações, sem que isto signifique dizer que tais situações são perfeitamente justificáveis. Comenta Muniz Sodré: “Fascismo não é um termo esclarecedor do comportamento dos personagens, apesar de sabermos o quanto o perigo do totalitarismo ronda as exceções da lei. O que há mesmo é a realidade de uma guerra cotidiana não formalmente declarada e não suficientemente ponderada pelas elites pensantes” (Observatório da Imprensa online, 09/10/2007). Quando os jovens aplaudem a violência do filme nos cinemas, muitos também torcem por “um lado” e representam a si mesmos como homens de batalha. A guerra existe.

Os brasileiros em grande parte, pela sua longa história cristã, não conseguem receber uma representação qualquer da realidade sem automaticamente julgá-la moralmente. No caso da prática da violência, pouco se consegue empreender ou conversar com as pessoas que escape a julgamentos morais. Assim, logo se procura a explicação das coisas na moralidade. Na situação retratada no filme, portanto, deve haver “bons” e “maus” sujeitos. Se o filme é feito a partir da visão de mundo do “mau” sujeito (e esta seria um interpretação reducionista do personagem Nascimento), só pode ser porque se quer apoiar o mal – interpretam os moralistas. Esta interpretação que condena a apologia à violência no filme, é a mesma que acredita que existem “maus” sujeitos que precisam ser detidos ou exterminados. Como explicação maior da violência é ela própria reprodutora da violência, pois todo discurso é uma prática social viva e atrelada a ações respectivas. Os discursos sobre os “maus” sujeitos como explicação para a violência são uma das múltiplas causas da violência.

O filme não existe num vácuo de interpretação, de história e cultura. As pessoas que estão assistindo são as mesmas, com exceções, que votaram SIM às armas no último plebiscito, e grande parte acredita na violência como um mal a combater principalmente pela violência (sobre isto José Arbex Jr. já nos alertava na Caros Amigos). José Padilha está certo quando teme por uma cultura que acredita que a violência urbana é resolvida pela violência. Ele apostou na inteligência das pessoas fazendo um filme inteligente, porque não aponta “causas” ou “soluções”; deixa-nos pensar, o que poucos cineastas têm conseguido fazer (assim como ele também conseguiu em Ônibus 174, documentário que também mostra como as pessoas acham que a violência contra “bandidos” resolve e é justificada, quando o Sandro é atacado pelos transeuntes enfurecidos). “O filme mostra que as regras atuais e as condições sociais de nossa sociedade nos condenam a repetir continuamente um processo de corrupção e violência policial inaceitável.” - disse Padilha numa entrevista. Se os espectadores preferem torcer pelo “mocinho” ou pelo “bandido”, ou aguardar que o filme mostre um caminho (mesmo quando não sabemos nem como chegamos até aqui), que isto nos faça agir então para transformar estas interpretações reducionistas do mundo em uma gama de ações necessárias para melhorar a vida de todos em relação à violência. Mudar a consciência social dominante sobre a violência, o senso comum que divide a população entre “bons” e “maus”, ao mesmo tempo em que se questiona explicações finais, são ações que podem modificar nossa relação com a violência, incluindo um fator muito importante: a sua naturalização. Não é fechando os olhos que vamos resolver alguma coisa, mas também não é achando que já sabemos o que tem que ser feito. Há muito que fazer, por isto eu agradeço Tropa de Elite por nos irritar mais uma vez com esta realidade. Temos muito por resolver sim. Esperar demais de um filme, no entanto, é o tamanho da alienação e é a distância que separa os comentaristas de filmes das favelas.

Rodrigo Gomes Guimarães é antropólogo, professor da Universidade Estadual Paulista. Não é “mocinho” nem “bandido”.


Sobre a Tropa da Elite

Sim, sem ter as mãos trêmulas, admito que em muito me espanta a popularidade crescente daquele que, como implantado por uns e outros, tem sido classificado como “o filme mais comentado e mais polêmico dos últimos tempos”; ou seja, a tal “Tropa de Elite” (seja o filme; seja o livro: “Elite da Tropa”); e me espanto tanto com o tom vazio, na maioria dos casos, em que são propostos e conduzidos os pretensos debates; quanto com a pérfida ignorância reforçada pelos discursos construídos (entre desmoralizantes tapas na cara, asfixiantes sacos plásticos na cabeça, esquemas lodaçais de corrupção e incontáveis atestados contundentes da inoperância das instituições estatais e para-estatais – e aqui me refiro tanto ‘às polícias’ quanto ‘aos tais comandos’); além das demais desgraças elencadas nas referidas produções. Mas, para clarear o tom das linhas, em nada me espantam os quesitos: ‘violência institucional’, ‘barbárie uniformizada’, ‘caos social’, ‘estado de guerra-civil não declarada’, ‘hierarquia militar forjada à base de torturas físicas, psicológicas e das demais violências simbólicas e materiais’; pois, não de hoje, temos notícias de como as tais estruturas (sejam ‘as militares’, sejam ‘as sociais e urbanas’) vêm sendo moldadas e depreciadas pelos bem sabidos agentes envolvidos (quais sejam, ‘nós mesmos’, ou a tal ‘sociedade organizada’!). E, de fato, o que torna a fita (ou o livro) passível de embrulhos estomacais e desesperantes enxaquecas são as máximas falaciosas (além das anedotas e repetições massificadoras) que foram e vêm sendo forjadas muito mais na (não)interpretação do grande público, do que na construção da narrativa.

A começarmos pelo absurdo de se “chamar (o tal) Capitão Nascimento” para solucionar qualquer problema, a todo e qualquer momento. Algo que bem pode ser o nascimento de um pretenso substituto (tão efêmero quanto regionalista) para frases vazias como: “Valha-me Nossa Senhora” ou “Deus me ajude”. E, além do mais, em muito me assustou a absurda repetição generalizada de que o referido filme havia sido ‘censurado’. Quando, em verdade, o que ocorreu (antes da estréia do mesmo) foi que uma versão (não oficial) do tal “Tropa de Elite” começou a circular na rede mundial de computadores, muito antes da sua estréia nas salas de exibição ao público. E, assim, a ação de piratas em furar a estréia do tal filme virou, na boca do povo, caso de censura para com a referida fita.

Todavia, o pior de tudo recai, também, sobre a idéia empurrada goela à baixo, na contra-mão do bom-senso e da realidade, transferindo para os usuários de entorpecentes a responsabilidade, exclusiva (ou majoritária), pela violência urbana consolidada (ao longo de séculos) no seio da (mal)dita sociedade de mercado. Diz-se, no filme (o que, há tempos, é reforçado com senso comum e com discursos de panfletagem jornalística, ou melhor, com implantes de opinião pública); e repete-se cada vez mais, desde que escolheram o tal filme como algo semelhante à profecia da solução contra o crime organizado e a violência urbana; que: “os usuários de entorpecentes são financiadores da violência”. Pois, o dinheiro arrecadado com o tráfico é investido na aquisição de armamento de guerra e, por conseqüência, para uns, quem mata na tal guerra-civil não declarada não são as balas (dos policias ou dos soldados dos comandos), mas sim as notas de Real, que circulam no referido comércio (ilegal). E sem tecer maiores comentários sobre a legalização de certos entorpecentes (Lei 11.343/06); sem tratar do submundo lucrativo das mais distintas e bem relacionadas mercadorias (sejam lícitas ou ilícitas; sejam armas, pessoas – inteiras ou em partes – ou drogas) e sem tratar das parecerias necessárias entre o comércio ilegal, a lavagem de dinheiro e as instituições financeiras; neste sentido, repetir que “quem financia o tráfico patrocina a violência” é quase a mesma coisa que endossar máximas (falaciosas e absurdas) tais quais: “só com guerra se alcança a paz” e “a guerra contra o terror é o único modo de se combater o terrorismo no mundo”. E Israel, com suas seis décadas de ‘guerra preventiva’ e de ‘combate ao terror’; bem como o caos instaurado no Iraque após a invasão estadunidense, em 2003; e, não menos, as décadas de continuísmos na ingerência do caos social e urbano que alcançou o Rio de Janeiro, há tempos, e que também foi um dos maiores responsáveis pela mudança da capital da república para o interior do território nacional; todos esses eventos, e outras ocorrências similares, são provas cabais de como violência institucional, seja esta explícita e militar ou velada e econômica, não combate, a contento, o caos social.

E, assim sendo, dizer que os usuários de drogas são os agentes assassinos de crianças ou adultos, mortos na guerra-civil (não declarada) em que vivemos, é a mesma coisa que dizer que “quem tem algo a ser roubado (ou furtado) é quem financia e fomenta a violência; e são os (únicos ou maiores) responsáveis pela existência do número absurdo de furtos e assaltos”. E, no mais, se não fossem tão rentáveis as atividades dos narcotraficantes, por certo, o número de assaltos, furtos e seqüestros seriam ainda maiores; posto que, as incursões policiais nas referidas comunidades formadas por “populações em situação de risco” não estão atreladas ao (aquecimento ou resfriamento do) comércio (legal ou ilegal) de narcóticos. Destarte, e inegavelmente, o dinheiro para armar os tais comandos viriam de outras atividades econômicas, licitas ou não. Provavelmente, ou mais possivelmente, seriam sim atividades econômicas ilícitas, mas, de fato, não por conta de mau-caratismo ou de bandidagem inerente, necessária e relativa às tais comunidades em situação de risco; pois, afinal de contas, as atividades ilegais (mesmo de mercadorias que têm sua circulação, há séculos, legalizada) são (inegavelmente) as mais rentáveis (por não serem tão severamente oneradas pelas bem sabidas cargas tributárias; tão temidas e tão combatidas por certos e bem conhecidos setores). E quanto ao caos social, a violência institucional e as demais seqüelas, rapidamente, aqui ventiladas: “Quase dois irmãos”, outro filme nacional, (junto com “Cidade de Deus”, “O prisioneiro da grade de ferro”, “O senhor das armas”, “A Corporação” entre outros, brasileiros ou não) também tem sua parcela de contribuição para dar na construção de uma crítica mais esclarecida sobre ‘instituições estatais ou para-estatais’, ‘guerra-civil não declarada’, ‘caos social’, ‘violência urbana’ e, também, sobre algo mais do que aqui foi dito e que, à torto e à direito, tem sido distorcido frenética e repetidamente, de modo vazio e irresponsável; em detrimento da razão-crítica, do esclarecimento dos fatos e da construção da verdade.

E se insistem uns em atestar que o quê mata na guerra-civil são as notas de Real; alerto (em máxima redundância) para o fato de que nas ditas comunidades de situação de risco não morrem (adultos e crianças) somente por conta de ferimentos causados por disparos de armas de fogo. Não. A miséria, a fome, a ausência das devidas condições e a inexistência, ou a precariedade, do acesso necessário às redes de educação, saúde, lazer, bem estar social e infra-estruturas como água, esgoto, energia elétrica; entre todas as demais e sempre bem lembradas dificuldades; todas essas foices mortais (presenciadas no cotidiano das ditas comunidades que vivem, e não exclusivamente no Brasil, em situação de risco) matam independentemente de tiros. Em silêncio e sem sensacionalismo. E, esse silêncio e toda essa omissão miserável, matam muito mais que os disparos realizados nas trocas de tiros, disparados por bandidos (com ou sem fardas) e atribuídos às notas de Reais acrescidas aos lucros do comércio de drogas (realizados em mansões ou em favelas); notas de Real que chegam também aos lucros (mais que astronômicos) do setor financeiro, no bem conhecido processo de lavagem de dinheiro; quando, costumeiramente, dinheiro sujo, de origem duvidosa ou desconhecida (ou desconsiderada!) é (re)investido em bancos, bolsas de valores e nas demais instituições (tão assassinas quanto) financeiras. Representantes legítimas da Tropa da Elite Social; setores que ainda são os detentores dos meios de implante de opinião no público e dos demais monopólios que reforçam cotidianamente o caos e os abismos sociais.

Gustavo Henrique Ferreira é cientista do direito.

Fonte: revista Caros Amigos. Acesso em 09/12/2007
http://carosamigos.terra.com.br/

* Mikhail Mikhailovich Bakhtin
* (1895 - 1975)- lingüista russo. Saiba mais (inglês).
Clicar

Um comentário:

Rodrigo Guim disse...

Obrigado AIRTON por manter meu texto no ar, acho que a Caros Amigos não o tem mais. Abraço. Rodrigo Gomes Guimarães.