sábado, 6 de outubro de 2007

Felicidade: reflexões de Eduardo Giannetti

Segunda-feira, 3/2/2003
Felicidade: reflexões de Eduardo Giannetti
Jardel Dias Cavalcanti

notAS: memorizar poesia

A vida é uma doença incurável (Abraham Cowley)


Há poucos dias o jornal O Estado de São Paulo publicou uma matéria com a seguinte chamada: A felicidade, numa fórmula matemática. Pesquisadores ingleses montam equação que mede o estado emocional. O artigo ainda dizia: se você é feliz e tem consciência disso, então seu estado de ânimo é o resultado de P+5E+3A. É a fórmula da felicidade. Havia um teste a responder e quanto mais pontos você fizesse, próximos de cem, mais feliz seria. Fiz o teste: 50 pontos, ou seja, estou no meio, mas longe de ser feliz.

O tema da felicidade é quase que abandonado por pensadores sérios da atualidade. Agora temos um que se aventurou no assunto. Eduardo Giannetti é um escritor corajoso. Quem ousaria, na atual conjuntura das excessivas e calhordas publicações de auto-ajuda, escrever um livro cujo tema seja a felicidade?

Outra questão interessante: quem ousaria comprar um livro cujo título, grafado em preto sobre um fundo abóbora, seja Felicidade? Fico imaginando uma legião de leitores mal-avisados, em busca de uma saída fácil para suas desgraçadas vidas cotidianas, comprando este livro e se decepcionando com sua leitura difícil para um leigo.

Pois bem... O livro existe e o que interessa é debater parte de seu conteúdo. Trata-se de Felicidade: diálogos sobre o bem-estar na civilização, de Eduardo Giannetti, publicado pela Companhia das Letras.

O livro é escrito em forma de diálogos. O termo Diálogo apresenta-se como uma forma literária na qual o autor procura transmitir idéias através de uma discussão de viva voz. Os exemplos mais antigos dessa forma são os diálogos de Platão, seguidos pelos de Xenofonte e mais tarde pelos de Aristóteles. No período tardio da literatura grega o escritor Luciano transformou essa forma literária num veículo para suas sátiras. Na literatura romana os melhores exemplos são os tratados de Cícero e Tácito (autor de Dialogus de Oratoribus, um diálogo sobre as causas do declínio da oratória).

No livro que ora tratamos, o autor reúne quatro ex-colegas de universidade que passam a se reunir para discutir questões relativas à problemática da felicidade no atual estágio de progresso civilizatório em que nos encontramos. São eles: Leila, estudiosa de ética clássica, militante do movimento ecológico, mãe de três filhos e professora universitária; Otto, economista liberal bem-sucedido, positivista e amante do golfe; Alex, filosófo analítico, ex-marxista que ganha a vida como roteirista; Melo, erudito historiador das idéias que leu demais e acha-se em dificuldade para acreditar em qualquer coisa, atualmente desempregado.

A partir de um primeiro encontro o grupo decide estabelecer uma regra básica para o debate: a cada encontro um dos participantes escreveria um texto e destribuiria uma bibliografia básica para ser discutida no próximo encontro. No cerne do conjunto dos debates firma-se basicamente a seguinte questão: até que ponto a civilização moderna tem promovido ou dificultado a busca da felicidade? Para resolver a questão (ou ao menos tensioná-la) é chamado um grupo de pensadores tais como Giordano Bruno, Baco, Kant, os iluministas, Freud, Nietzsche, Marx, Mill, Weber, entre tantos outros.

É simplesmente impossível resumir o livro em apenas poucas páginas, dado o grau e quantidade de questões que vão surgindo ao longo dos diálogos. Aos pensadores e suas idéias acrescenta-se, ao longo do livro, resultados de pesquisas sobre o que gera a felicidade ou o que a limita. Da realização profissional e amorosa à busca da felicidade pelo uso de drogas - todas tentativas meio que desesperadas - o livro discute o assunto de forma interessante e abrangente. Mas... para o leitor que busca encontrar qualquer espécie de discussão que o leve à uma solução segura, avisamos, pode tirar o cavalinho da chuva, pois o livro só aumenta nossas inquietudes.

As conclusões são variadas: nem a razão, nem o delírio podem nos leva à terra prometida; a riqueza, segundo pesquisas, também não é nenhuma tábua de salvação (embora proporcione alguma alegria, também gera mais incertezas e requer mais atenção - que por si inibe o prazer); os materiais tecnológicos ultramodernos também não proporcionam aumento da felicidade, não produzem o doce sentimento da existência. Ou seja, estamos perdidos no mundo que construímos. Nosso projeto civilizatório não pensou no essencial: a busca da felicidade humana. Se pensou, fracassou, pois estamos em meio a um mundo atroz, ainda perdidos nessa busca do mais elementar sentimento humano: a felicidade.

Aumentar o nível tecnológico do planeta resolveria nossa principal tensão existencial que é, afinal, vivermos em um constante bem-estar? Veja-se as seguintes questões colocadas pelo livro: I - será que os gostos e preferências dos consumidores não vêm sendo sistematicamente distorcidos por um bombardeio de estímulos e uma máquina de propaganda mais ferozes que qualquer poderio militar? II - a TV a cabo chegou ao Butão. De agora em diante, as crianças budistas estão expostas à radiação colorida da Cartoom Network e MTV. Em breve, os jovens butaneses estarão freqüentando shows de rock, comendo nos fast-foods e protestando contra a globalização - lutando com os jovens de todo o planeta por um mundo melhor. É patético.

Se você perguntar para um grupo razoável de pessoas o que traria felicidade, você obteria a resposta de que o dinheiro resolveria tudo, ou ao menos, ajudaria mais que tudo a trazer felicidade.

Segundo o livro de Giannetti, baseando-se em pesquisas e material filosófico, político e sociológico, a conclusão dessas pessoas está errada. Não é o dinheiro que traz felicidades. Atente para a grande questão: o comercio internacional de drogas movimenta cerca de 400 bilhões de dólares por ano, ou seja, oito por cento do fluxo mundial de comércio ou o equivalente do turismo e petróleo. Quem consome esta droga? Sabe-se que a maior parte desta droga é consumida por pessoas que têm um nível de vida acima do médio. Afinal, riqueza produz realmente felicidade? Se sim, porque essa busca desenfreada por uma evasão química auto-destrutiva? Quem recorre às drogas está buscando algum alívio ou paraíso artificial, ou seja, está em busca de meios químicos que proporcionem o que o seu ambiente social e os seus próprios recursos espirituais não são capazes de satisfazer. O sujeito toma a droga e pronto - não há mais do que reclamar. Resignação e êxtase. Ou seja, o pão e circo pós-moderno do novo império romano.

Segundo Adam Smith, para a maior parte das pessoas ricas a principal função da riqueza consiste em poder exibi-la. Ou seja, só interessa a posse do que pode despertar inveja. Então, se os pobres rissem e escarnecessem da riqueza e da ostentação dos ricos, o circo desabaria. Desse ponto de vista, se o rico não tiver seu expectador ele se tornará um frustrado permanente.

Para Smith, a verdadeira felicidade mora mais na imaginação das pessoas e na obtenção de uma certa tranqüilidade de espírito do que na satisfação ilusória da vaidade associada a níveis maiores de renda e consumo.

Esta é uma das afirmações do livro. Elas são variadas, esquentam o debate entre os personagens, fazem nossa cabeça refletir sobre o mundo que construímos, sobre a vida que construímos, sobre os desejos que achamos que podem nos levar a um tipo de satisfação perfeita. Não resolvem muito, não nos induzem a seguir uma trilha, mas produz a tensão essencial que precisamos para não nos deixar enganar por fáceis soluções.

Infelizmente a pesquisa sobre o tema a partir das tensões que a literatura e as artes em geral trazem não é feita, ficando essa dívida do autor para com seus leitores. Quem sabe num próximo volume o assunto não poderia ser discutido à luz da poesia, do romance, das temáticas musicais e operísticas?

De qualquer forma, vale a pena entrar em contato com o vasto universo de idéias sobre a felicidade, agrupadas de forma inteligente pelo livro de Giannetti.

Quando o assunto é felicidade, lembro-me sempre de uma frase do psicanalista Wilhelm Reich (aquele que afirmava que a função do orgasmo é produzir alegria, saúde psíquica e um contato com a energia cósmica). Ele dizia que viver na plenitude é abandonar-se plenamente ao que se faz, pouco importa que se estude, se ame, se dirija um carro, se faça um passeio ou plante um jardim. O que importa é o mergulho total no que se faz, mergulho apaixonado e, até, pode-se dizer, inconsciente.

Dessa forma, a felicidade existe somente e principalmente para aqueles que não sabem que são felizes. A máxima de Fernando Pessoa se aplica aqui: para ser feliz é preciso não saber-se feliz.

Vou terminar este texto com um poema do escrito Heinrich Heine, já que o autor nos deixou em falta nessa área. Trata-se de um poema que dá o que falar, intitulado FELICIDADE. Vamos a ele:

FELICIDADE

Oh, que dama fácil, a felicidade!
Mal se acostuma num lugar, ela já sai...
Afaga teu cabelo, cheia de vaidade,
beija-te às pressas, bate as asas e se vai.
Dona infelicidade, ao contrário,
te prende ao coração a ferro e corda.
Para ir embora, diz não ter horário,
senta-se contigo à cama e borda.

Para ir além

Disponível no site http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=924

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