terça-feira, 2 de outubro de 2007

As superfícies intactas


Por Carlos Roberto Vasconcelos

Hoje, depois de longos anos, revisito o Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará.
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Fico por ali, relembrando o tempo em que cursei Letras. Lentamente vou espiando pelos combogós das janelas: outros mestres, outros discípulos sob a mesmíssima arcádia. Fito lá de cima o pátio e, de memória, avisto minha geração, irrequieta, a circular pelos meandros do conhecimento e da dispersão própria da tenra idade.

Como não poderia deixar de ser, vou à biblioteca. O acervo continua em frangalhos como há dez anos. O governo não compra livros, é o que me parece. Mas a viagem não se perde de todo. Visitando a estante do Ceará, deparo-me com uma obra que só conhecia de ouvir falar. Por ser raríssima, nunca tive a oportunidade de folheá-la, mesmo sendo eu um incorrigível comprador e leitor de livros cearenses. Refiro-me a Finalidade do Mundo, do nosso Raimundo de Farias Brito, o primeiro e maior filósofo brasileiro (na opinião abalizada do professor Genuino Sales). Que felicidade folhear aquele livro pela primeira vez. Em verdade, é uma trilogia, acenando para um hipotético leitor. Às vezes desconfio de que os livros é que encontram os leitores.

De imediato, veio a decepção. Os cartões de autógrafo, datados de 2004, onde se registram manualmente os empréstimos (acredite, a biblioteca de Letras e Filosofia da UECE ainda não é informatizada), os cartões estão intactos, uma brancura impecável. Nenhum empréstimo. Em todos aqueles anos, ninguém quis saber de Farias Brito. Pus-me a refletir. Se numa faculdade de Letras e Filosofia ninguém se importa com livros, então para que livros? Olhei todo aquele velho acervo e angustiei-me. Serão cada vez mais inúteis os livros para as novas gerações?

Olhando mais atentamente, descubro outros exemplares do Finalidade do Mundo. Estes, mais surrados. Torno a olhar o cartão de autógrafos, já na expectativa de vê-los sem um carimbo, branquinhos como os outros (para um livro, não há destino mais trágico do que as superfícies intactas, sem uma digital, uma mancha de suor das mãos). Já pensava em indignar-me, desabafar meu constrangimento, decantar a ignorância dos outros e a apatia nacional pelos livros. Pronto, havia encontrado o assunto para uma crônica... Qual nada! O cartão de autógrafos arrolava inúmeras assinaturas de diferentes leitores. Pelo menos uma dúzia de estudantes havia lido a obra-prima do filósofo, se não toda, pelo menos trechos dela.

Os livros antes de tudo precisam ser abertos, folheados, e acabam nos fisgando. Nada mais inadmissível para um livro do que a indiferença. Eu disse uma dúzia de leitores? Não, não é muito, mas nem tudo estava perdido. Respirei aliviado. Um ufa, dois ufas aos deuses do Olimpo. Aprumei o passo, ergui o queixo e saí recompensado. Agora eu também já sabia onde encontrar o velho filósofo.


Carlos Roberto Vasconcelos
24/set/07

Um comentário:

Ana Maria Ribas disse...

Carlos, vc tomou as dores de Farias Brito... que muito provavelmente são as suas próprias. Escrever um livro é uma responsabilidade tremenda... junte-se a isso, a angústia de ser mal compreendido... ou de ser compreendido bem demais... e a pior delas:o horror de não ser lido... rsrs... já passei por tudo isso e não foi tão mal assim. Publique logo os seus livros. Faço questão de ser a primeira a comprar, sujar e lambuzar o primeiro exemplar. Rsrs. Um abraço!