quarta-feira, 26 de setembro de 2007

O gozo na experiência e teoria psicanalítica

GRUPO DE QUATRO Nus (1925), óleo sobre tela de Tamara de Lempicka (Foto: Reprodução)


O livro traz uma reflexão profunda sobre um dos conceitos mais importantes da psicanálise, à luz do pensamento de Jacques Lacan. O autor demonstra, com rigor, que trata-se de uma ferramenta indispensável para o analista confrontado, cada vez mais, com o excesso de gozo que não mais encontra as barreiras do prazer.

`Sejam vocês lacanianos, se quiserem, eu sou freudiano´. Nestes termos, Lacan assumia que o futuro da psicanálise está na dependência direta do incessante retorno às fontes freudianas. Maneira incisiva de lembrar aos analistas que a transmissão da disciplina criada por Freud, exige repetição e traição a um só tempo. No campo da ciência do particular não há lugar para aprendiz de feiticeiro: o analista deixando-se invadir pela ´estranha-conhecida´ presença do outro, vive a experiência de modo a modificar, inventar e recriar a teoria.

Com um quê de ortodoxia e provido dos modelos e sensibilidades que recebeu de sua época, Lacan abandona a leitura cronológica dos textos freudianos para buscar nos brancos e nas margens de cada um deles, um não dito. Isto resultou numa série de contribuições originais que fez à psicanálise, sistematizadas durante as décadas. ´Não me repito, mas sempre digo o mesmo´ afirmava Lacan. Assim, relendo os fundamentos da pulsão de morte, transformou em conceito o vocábulo da língua alemã, ´Genuss´, gozo, usado por Freud para designar o que está proibido ao humano: a repetição do gozo mítico da primeira satisfação. No plano clínico, gozo remete à encruzilhada estabelecida entre uma prática voltada exclusivamente à interpretação do sintoma, como o era no tempo da fundação da psicanálise, e a urgência de se introduzir o limite capaz de orientar o sujeito em direção ao desejo.

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Néstor Braunstein acaba de ter lançado no Brasil, Gozo, livro que ilumina de modo original e criativo, o conceito de mesmo nome. O autor revela uma capacidade inquietante de escavar o conceito numa dimensão poética, clínica, teórica e didática ímpar. Resultado: desde sua primeira publicação no México em 1990, à segunda edição francesa de 2005, Gozo passou por sucessivas modificações, atualizações, reescritas e inovações terminológicas. Ao designar a dimensão ´gozosa´ da psicanálise, faz surgir outros sintagmas, enriquecendo a conceituação lacaniana do que está mais além do princípio do prazer freudiano. Sorte a do leitor brasileiro. Ganha a obra exaustivamente revisada e, em seu conjunto, acrescida de novas indicações bibliográficas e ensaios inéditos.

O dom em sair e voltar ao campo da psicanálise com uma perspectiva de forma absolutamente fecunda, sustenta a evolução do trabalho teórico de Braunstein. Da urgência em abordar as complexas relações entre o ensino de Lacan e o pensamento de Foucault, surge a escrita do ensaio que articulado com o conjunto do livro, atualiza o ponto mais debatido da contribuição lacaniana sobre o gozo. A saber: a inexistência de qualquer relação natural entre os sexos que, segundo Braunstein, pode servir como base de compreensão para a teoria ´queer´.

A consistência clínica do autor abre novas janelas, articulações originais entre o conceito de gozo e as estruturas clínicas - neurose, perversão e psicose. Bela maneira de dar conta do que faz e explicitar claramente para que serve a psicanálise, num mundo em que cada vez mais se tenta apagar a singularidade do sujeito, oferecendo-lhe a ilusão de que os objetos gozosos podem rechear a falta-a-ser que o desejo revela em sua raiz. E neste sentido, as referências feitas às patologias mais dramáticas de nossa época - anorexia, bulimia, toxicomanias e outras formas de angústia - todas ligadas ao excesso de gozo iluminam a crítica da psicanálise à cultura. A produção maciça de objetos na atualidade atende, exclusivamente, à demanda do mercado capitalista em detrimento do sujeito do desejo. Ou seja, o homem contemporâneo é compelido a gozar excessivamente daquilo que não serve para nada.

No último capítulo, Gozo e ética na experiência psicanalítica, o recurso usado para encaminhar o leitor a tal sorte de questão foi o de explorar uma outra face do gozo - ´aquela que passa pela mediação ativa do diafragma da palavra´. O autor parte da hipótese de que se a experiência psicanalítica está jogada integralmente na relação do sujeito com o gozo, ela se orienta para um certo bem que é o gozo como possível. E aqui o autor faz uso do estilo que convém à sua mensagem: ´o gozo é aquilo que deve ser recusado para que possa ser alcançado. Na rota até o gozo há que fazer, forçosamente, uma escala no porto do desejo´. O lirismo da sentença agrega algo mais ao rigor clínico e teórico do autor.
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Disponível no site: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=472326 (Jornal Diário do Nordeste, 23/09/2007)

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