FINS D´ÁGUAS
...não narrei nada à toa: só apontação principal, ao que crer posso. Não esperdiço palavras. Esse fraseado de Riobaldo, personagem de Grande sertão: veredas, bem serviria de epígrafe para o livro Fins d’águas, de Genuino Sales. Nem tirar nem pôr. Consistiria em pecado, assim como nas Sagradas Escrituras. Não se muda um til.
A escrita é límpida porque oriunda de mãos artesãs, com vasto tirocínio nos meandros da palavra. Esse envolvente livro é o sertão contado em miúdos. Sente-se o cheiro da terra como nas canções de Gonzaga e Humberto Teixeira.
Fins d’águas é livro de hoje e de amanhã. De hoje, pela atualidade da concepção, da tessitura, e é póstero pelo registro sutil, mas vigoroso do universo sertanejo, pelo testemunho humano e testamento lingüístico. Trabalha no campo da tradição. É documento de memória, legado fundamental para o acervo do inolvidável. Se o autor não engendra palavras, feito Guimarães Rosa, prima por incorporá-las à memória coletiva e resguardá-las das intempéries.
O livro é telúrico, mas com um teor profundo de universalidade que só os grandes mestres são capazes de conceber. De suas páginas jorra um manancial de palavras e expressões genuinamente nordestinas. Não cabe aqui a obsoleta discussão regional x universal. O autor é consciente do seu testemunho (quase dizia protesto), não se rende a facilidades, prefere os valores superlativos.
Não que tenha a deliberada intenção do combate, da ruptura contra a cultura globalizada (não é do seu feitio), mas simplesmente detém a plena vocação para o telúrico (e isto não é pouco), provando que sertão é (mesmo) dentro da gente. Fosse essa prosa lançada em plena geração de 30, estaria consagrada aos altos píncaros. Sendo lançada hoje, não é tardia, mas reabilitadora de um universo real, autêntico, co-existente com a cultura massificada.
Fins d’águas é obra fotográfica, não pela gratuidade descritiva, mas pela arquitetura minuciosa do ambiente regional e seu folclore, que impregna a memória ou o imaginário do leitor.
Genuino Sales transpõe para o papel a dicção inconfundível do exímio contador de causos que é, e adiciona a este predicado o estilo primoroso, esmerado, sem deixar de ser espontâneo.
A sensualidade empresta leve tempero a várias das narrativas (...os peitos vazavam do corpete e mostravam-se no busto como duas peças milagrosamente torneadas, com bicos morenos endurecidos pelo contacto da brisa.) O erótico e o humorístico se revezam, às vezes até se misturam, como no final do conto Nanico. A galeria de tipos talhada com precisão atesta a medida humana da obra. A violência, a religiosidade, o sobrenatural, o lírico, definem a tônica desse universo fantasticamente real que é o sertão. O sertão de Rosa, de Rachel, de Graciliano, o sertão genuíno. Podemos terminar como iniciamos, dando voz ao Riobaldo: o tudo que eu conto, é porque acho que é sério preciso.
Carlos Roberto Nogueira de Vasconcelos, autor de Mundo dos Vivos (ganhador do prêmio Clóvis Rolim de Contos, pela Academia Cearense de Letras-2006) e A Inquietude da Busca (poesia), ambos inéditos.
carlosvasconcelos@sesc-ce.com.br
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