Em seu novo livro, o lingüista Tzvetan Todorov defende que a literatura deve estar mais próxima da busca de sentidos para a vida do que da análise das estruturas textuais
Gabriel Perissé
O livro La littérature en péril (A literatura em perigo, ainda sem tradução no Brasil), de Tzvetan Todorov (Editora Flammarion, 2007), vem encontrando acolhida inusitada. Suas aparentemente modestas 94 páginas escondem, e revelam, grandes pretensões. Ou pelo menos uma grande e louvável pretensão: salvar a literatura!
Nesse ensaio fascinante, de tranqüila lucidez, Todorov (nascido na Bulgária em 1939) defende uma única idéia: precisamos aprender com a literatura, redescobrir sua força didática, didática no melhor sentido da palavra. Um romance, um poema, um conto ajudam-nos a descobrir facetas ignoradas do nosso entorno. Como discurso interpretativo carregado de sentido, faz-nos compreender melhor quem somos, para onde vamos, de onde viemos.
Quando era estudante e jovem pesquisador universitário, porém, vivendo num país do bloco comunista, Todorov sabia ser arriscado abordar a literatura do ponto de vista de seu conteúdo explosivo.
Era grande o risco de cair em "heresias", ferir a ideologia reinante, expor-se à desconfiança do sistema de dogmas dominante. Por isso a opção formalista, a preocupação com a estrutura das obras literárias, a busca de certa neutralidade. Ficassem as idéias e sensações subversivas para outro dia qualquer, ou para quando viesse outro regime.
Mais tarde, em 1963, Todorov foi trabalhar na França, tornando-se em alguns anos referência acadêmica obrigatória. Seu nome, ao lado de gigantes como Barthes, Genette e Jakobson, ficou para sempre associado ao estudo do funcionamento do texto literário. No contexto das faculdades de Letras do Brasil, o recurso vinha a calhar. Também nas nossas décadas de 60 e 70 era perigoso falar de literatura nua e crua. Sejamos, portanto, estruturalistas!
Retorno à condição humana
Passaram-se quatro décadas. Todorov está hoje mais preocupado com o sangue e as entranhas da literatura do que com seus mecanismos. A literatura, em sua pungência, em sua beleza, nos ajuda a viver, faz com que imaginemos novas formas de conceber e configurar o mundo. Mais do que objeto de estudo para um grupo seleto, nos permite a todos vislumbrar a condição humana, com suas contradições e loucuras - nossas contradições, nossas loucuras. Quixote, Gregor Samsa, Fausto são personagens mais vivos do que as pessoas que nos rodeiam. Mais vivos, e instigantes. Inesquecíveis "professores" da existência.
Todorov faz o alerta: a literatura corre sérios riscos. A escola e a universidade tornaram a literatura um pretexto, um trampolim para estudar os textos enquanto textos, e somente enquanto textos. Colocaram-na no tubo de ensaio. Sobre ela está o microscópio. Por força das análises estruturais, atentas à obra literária em si, atentas aos elementos internos da obra, abstraindo-se de sua relação com o mundo, com as pessoas comuns, com os grandes temas da vida... essas obras perderam seu ferrão, digamos assim. Aos nossos olhos, sobretudo aos olhos de quem estudou literatura e fez desse estudo a sua profissão... eis um belo objeto de análise. E os eficientes instrumentos de análise passam a ser mais importantes e mais belos do que o objeto analisado!
O perigo está em deixar a literatura em segundo plano, em último plano, enaltecendo as teorias literárias à custa do poema, do conto, das histórias que este ou aquele autor veio nos contar... O teórico não se emociona com as histórias, não se deixa envolver por seu encanto, não permite que se misturem às biografias reais das pessoas reais. Sua principal função como teórico é analisar, separar, distinguir, virar o objeto do avesso, fazer considerações sobre a metalinguagem, equacionar a literariedade do poemático, investigar os actantes presentes na textualidade do romance...
A letra, o sentido e os valores
Sem abandonar a letra, Todorov no entanto quer afastar-se desse mundo de especialistas que ele mesmo ajudou a criar. Em vez de nos esfalfarmos tanto para detectar o modo como os livros foram construídos, em vez de nos debruçarmos tão-somente sobre a materialidade do texto pensando em suas formas lingüísticas, atentemos para o que os livros falam, e para o impacto que produzem em nós... Os livros não são objetos fechados e absolutos. Na realidade, a literatura é perigosa porque põe em xeque nossas concepções de mundo, porque abre portas e janelas, desencadeia a memória, cutuca a imaginação, provoca abalos em nossas certezas, propõe valores, questiona outros, oferece a chance de pensarmos no sentido da vida.
Todorov está, perigosamente, lembrando aos professores, críticos literários e aos próprios escritores que todos devemos ser leitores comuns, gente como a gente cuja secreta ambição é procurar na literatura algo mais do que um "artefato" que possua em si mesmo sua justificativa, ou que sirva como pretexto para produzir teses acadêmicas ou ensaios eruditos para eruditos leitores.
O leitor comum, mesmo que não o expresse, procura na literatura o não-acadêmico, o não-sofisticado. Procura, para dizer de um modo positivo, as questões humanas tratadas de modo vivo e apaixonante, procura a aventura, os dilemas, as paixões, os dramas, as surpresas, quer sofrer e alegrar-se ao longo da leitura, fugir, como dizia o poeta Mario Quintana... para a realidade! A realidade paradoxal do texto ficcional. O leitor comum não possui técnicas de leitura e análise, mas é a este leitor que o escritor se dirige... e não aos críticos especializados.
Molière, por exemplo, lia suas peças para o cozinheiro, vendo neste o seu crítico mais exigente. O pensador romeno Emil Cioran, num dos seus amargos (mas inteligentes) aforismos, disse: "Gosto de ler como o porteiro de um prédio lê: identificando-me com o autor e com o livro. Qualquer outra atitude me faz pensar num despedaçador de cadáveres". A percepção está correta. O leitor pode até vir a ser um crítico literário, mas a leitura para valer implica essa identificação que, aos olhos dos mais pedantes, é coisa de gente despreparada.
Para salvar a literatura do perigo que corre, o perigo de tornar-se desinteressante, cadáver dissecado, enterrado e esquecido nas estantes, temos de reaver a sua capacidade (perigosa capacidade!) de ser experiência viva, e experiência ensinante. Grandes autores como Guimarães Rosa, Dante, Nelson Rodrigues, Thomas Mann e Kafka nos ensinam, ao seu modo, ao modo poético, teatral, dramático, ao modo ficcional, o que antropólogos, sociólogos e filósofos também procuram nos dizer empregando a terminologia filosófica, sociológica, antropológica...
A escola e a universidade pecam se exigem dos alunos que conheçam não tanto a obra literária em sua beleza, em sua contundência, mas aquilo que a enquadra de modo mais ou menos rígido: classificações, métodos e categorias de análise, referenciais teóricos... ou seja, o que vive da literatura mas não é literatura, não provoca, não apaixona, não transforma o leitor.
Mestres de vida
Todorov faz uma proposta simples e revolucionária. Ir ao encontro da literatura para ter aulas existenciais com Shakespeare e Sófocles, Baudelaire e Balzac, Dostoievski e Proust. Um ensino excepcional!
Afastar-se da dissecação científica do texto literário não significa, porém, entregar-se ao puro prazer da leitura, sem critérios ou objetivos. O leitor comum precisa aprender a ler melhor para melhor aprender com o que lê. Pensar com rigor, como diz o pensador espanhol Alfonso López Quintás, que há muitas décadas, à margem das modas, tem se dedicado a estudar a experiência estética e seu poder formativo.
Em seu livro Cómo formarse en ética a traves de la literatura (Ediciones Rialp, 1994), López Quintás propõe um método de leitura acessível, mas nem por isso menos eficiente. Autores como Hemingway, Samuel Beckett, García Lorca e Herman Hesse são lidos como mestres de vida, cujas obras nos apresentam a condição humana em sua ambigüidade, em sua desconcertante realidade. Não se trata de "didatizar" a literatura, mas descobrir na trama de um romance, nas imagens de um poema, na força expressiva de um texto diagnósticos profundos do homem de ontem, que, afinal, não é tão diferente do de hoje.
A leitura de obras literárias pode contribuir para o nosso aperfeiçoamento como seres humanos? Pode nos ajudar a repensar nossa maneira de viver? Pode ser, em suma, uma leitura educadora?
Combinando a proposta de López Quintás com o alerta de Todorov, é possível responder que sim. Ressuscitar o gosto da leitura, não tanto pela busca do prazer e da distração, mas como atividade intelectual rica de possibilidades, intuições e descobertas existenciais.
* Gabriel Perissé é doutor em Filosofia da Educação (USP) e professor do Programa de Mestrado da Universidade Nove de Julho (SP). www.perisse.com.br
http://revistaeducacao.uol.com.br/textos.asp?codigo=12444
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