Jornal Folha de S. Paulo. 24/10/2007
Nobreza humana não está na coragem com que recebemos o infortúnio, mas na nossa capacidade de prosseguir.
OS PESADELOS acontecem. Uns tempos atrás, um conhecido escritor português contava-me que, chegando ao aeroporto de Caracas, o seu laptop foi roubado sem deixar rastro. Mas o pior não foi o laptop. Nunca é. O pior foi o conteúdo do laptop: um romance original, ou uma parte generosa dele, que só existia no computador. Nenhuma cópia de segurança em casa.
Nenhum manuscrito. Nada de nada capaz de compensar a perda absoluta. Meses de trabalho, anos de trabalho, perdidos em segundos.
Thomas Carlyle
Foto:Wikipédia
Foi uma hora funesta. No dia seguinte, Mill regressava, branco como um fantasma, para comunicar que o manuscrito fora acidentalmente consumido pelas chamas.
A descrição que Carlyle nos deixou nas "Reminiscences" ainda hoje emociona qualquer cristão: o estoicismo com que a notícia é recebida, apesar da mortificação interior; as três horas de conversa esforçadamente banal, como se fosse Mill a necessitar de consolo; e quando este deixou finalmente a casa do historiador, para infinito alívio do casal, a mulher de Carlyle, incapaz de fingir normalidade, abraçando um homem destroçado e chorando com o dramatismo que apenas concedemos às óperas clássicas. E as palavras de Carlyle, finalizando a cena, dirigidas a um Deus em que ele, para tragédia sua, não acreditava.
Mas a história não acaba aqui. A história acaba na minha estante, quando folheio, com uma reverência absoluta, a sua história da Revolução Francesa. Porque, depois da notícia das chamas, Carlyle sentou-se à mesa e recomeçou a partir das cinzas. Cada palavra, cada linha. Cada página.
Hoje, quando releio esse monumento de erudição, paixão e estilo, não encontro apenas um dos mais poderosos relatos sobre a glória e a miséria de 1789: as aspirações igualitárias e libertadoras da Bastilha que terminaram, como usualmente terminam, no terror das guilhotinas.
Encontro a evidência de que a nobreza do espírito humano não está na coragem com que recebemos o infortúnio. Mas na forma como o recebemos e, apesar de tudo, somos capazes de continuar. Mesmo quando o mundo nos parece perdido.
Livros de auto-ajuda? Sim, leitores; afinal, eles existem. Nas minhas piores horas, olho para esse volume aparentemente anônimo entre tantos volumes anônimos e há uma gratidão silenciosa e interior que me faz, tantas vezes, recomeçar.
3 comentários:
Um texto primoroso, uma lição primorosa. Obrigada amigo. É sempre bom lembrar dessa arte. A de recomeçar.
Obrigado digo eu amiga!
Seja sempe bem-vinda
Minha professora de Direito da USJT contou-nos uma história parecida, pegou um livro raro de familia, de um aluno judeu, e no caminho para casa, acabou dentro do Rio Tietê...foi dramático e tivemos uma aula de Direito sobre Bens e processo: e de como tomar conta da manográfia...
Postar um comentário